quinta-feira, 30 de julho de 2009

Vlad Tepes (ou "Drácula Segundo Marx")

Para ir direto ao ponto, acho comunistas/marxistas/marxista-leninistas/etc (até hoje não entendi a diferença e, francamente, não me interessa - como diria o soldado tailandês, é tudo a mesma merda) um bando de debilóides. A picaretagem de Karl Marx era tão óbvia que nem sei como alguém pode discordar de mim. Tudo bem, o materialismo dialético até que tem certa utilidade no estudo de História, mas que se foda. Um ponto positivo não justifica uma saravaivada de besteiras. Temos que considerar, em primeiro lugar, que o homem não era um cientista político. Ele era um economista e sua "obra" deve ser vista com tal fato em mente. Assim, não devemos encarar, por exemplo, "O Capital" como um manifesto político, mas como um tratado de economia. Sob este prisma, o tijolão é um fracasso completo. O valioso calço para segurar portas rebeldes escrito pelo alemão não estava conclamando as massas a se rebelarem contra as elites monopolizadores dos meios de produção. Ele estava dizendo que isso era inevitável - como um hippie depois de fumar um quilo de barunga, Karl Marx estava afirmando, cheio de autoridade, que "a revolução vem por aí, bicho. É só uma questão de tempo." E que a "ditadura do proletariado" se iniciaria nos Estados industrializados e acabaria resultando, organicamente, após um longo processo, no comunismo, onde a coletividade dos meios de produção seria adotada espontaneamente e o Estado deixaria de ter fim ontológico. É verdade que algumas dessas teorias se concretizaram. Onde é que houve mesmo a tal "revolução socialista"? União Soviética, China, Cuba, Coréia do Norte... países que, à época de suas revoluções, eram potências industriais e que hoje são paraísos para o trabalhador, onde a riqueza, ao contrário do que ocorre entre nós, burgueses decadentes, não fica concentrada na mão de uma minoria opressora, enquanto a maioria sofre na mais abjeta miséria. Peraí... não, nenhuma das teorias do mané se concretizaram. As tais "ditaduras do proletariado" ocorreram em países de economia preponderantemente agropecuária (a China e a Rússia eram praticamente feudais, puta que o pariu!), o Estado se tornou a oligarquia opressora, muito mais cínica e truculenta que a anterior, e o tal "comunismo" nunca se concretizou em lugar nenhum. Nem vai. Por que? Porque era uma teoria idiota. E como se chama um economista que só formula teorias asininas que nunca se concretizam? Um picareta. No meu entender, quem elaborou os Planos Cruzado I, II e Collor eram bem menos incompetentes que o barbudo. Nenhum deles, pelo menos, inspirou massacres de milhões de pessoas, cubanos hirsutos e xaropes discursando por horas a fio, venezuelanos que falam uma merda atrás da outra, sempre com um incompreensível ar de superioridade, ou ditaduras surreais comandadas por psicopatas com óculos de vovozinha. Eu até entendia que certas pessoas acreditassem nas abobrinhas de Marx (embora elas sempre tenham me parecido intrinsecamente antagônicas à natureza humana e fruto da mente de quem passou pouquíssimo tempo interagindo com gente de verdade) nos tempos da Guerra Fria, quando era impossível para o "mundo capitalista" saber ao certo o que se passava atrás da Cortina de Ferro, e achassem que a União Soviética era um paraíso trabalhista. Mas desafia minha compreensão o fato de, ainda hoje, mais de quinze anos após a queda de Muro de Berlim, existirem cretinos na América Latina que defendem o marxismo como se fosse uma espécie de vanguarda do pensamento político e encontram a aceitação de uma legião de tetraplégicos intelectuais, que engolem tudo com o maior entusiasmo.

O que tem isso a ver com Vlad Tepes, um obscuro filme romeno de 1979? Muita coisa. Mas é claro que eu vou divagar um bocado antes de chegar aos finalmentes. Afinal, duvido que alguém leia este troço buscando concisão. E, se lê, não posso fazer nada por tal pessoa, além de recomendar que continue lendo, pois, segundo inúmeras fontes de autoridade indiscutível (minha mãe e, de vez em quando, minha mulher), trata-se de um dos blogs mais relevantes da história da internet.

Tenho que deixar claro, de plano, que o voivode Vlad III da Valáquia, o Vlad Drácula ou Vlad Tepes (O Empalador) é meu personagem histórico favorito, embora passe longe da grandeza de um Júlio César, Alexandre ou Genghis Khan (em minha opinião, o maior, e mais injustiçado, líder militar e político da história da humanidade). Embora o homem não fosse perfeito, acredito que, essencialmente, suas motivações eram sincero amor à sua pátria e desejo de vê-la progredir, prosperar e escapar da posição humilhante de província do Império Otomano ou capacho da Hungria. Trata-se de um indivíduo que passou a maior parte da vida em cativeiro e, nos poucos anos em que permaneceu no poder, não se deixou seduzir pela aristocracia corrupta e mercenária que o cercava e buscou (em condições espetacularmente adversas) manter a independência de seu principado e ministrar a aplicação da lei sem distinção de classe. Acredito sinceramente (e já horrorizei um bocado de gente defendendo isso em público) que é graças, em grande parte, aos esforços do Empalador que as mulheres ocidentais de hoje podem usar fio-dental ao invés de sair por aí de burca.

Claro que o sujeito cometeu monstruosidades de intensidade e quantidade incalculáveis. Não sou idiota de negar o óbvio. Além de inimigos políticos, prisioneiros de guerra e criminosos, Dracula torturou e matou mulheres, crianças e coitados que simplesmente tiveram o azar de falar a coisa errada quando o monarca estava em "um daqueles dias". Além de utilizar empalamento (dã!), que, em minha opinião, é a forma de execução mais horripilante já concebida, em escala então sem precedentes, o príncipe também esfolava, cozinhava, queimava e esquartejava vivas suas vítimas.

Coloquemos, porém, as coisas dentro de suas devidas proporções: em primeiro lugar, o número de vítimas de Drácula tende a ser exagerado (nem a pau ele executou 100.000 pessoas, como algumas fontes indicam; números mais plausíveis variam entre 25 e 45 mil, incluindo inimigos mortos em guerra), graças a propaganda política disseminada por seus inimigos (principalmente alemães e turcos) desde a época em que ele ainda estava em atividade; em segundo, o comportamento dele, dentro de seu contexto histórico, não era nada excepcionalmente fora dos parâmetros - basta olhar os exemplo de Henrique VIII e Catarina de Médici, por exemplo. E pouco mais de um século depois, nossos antepassados europeus fariam escrotices tão horríveis, muito mais numerosas e bem menos justificáveis ao conquistar o Novo Mundo. Além disso, por mais que os atos do voivode romeno causem repugnância, é inegável que a maioria deles tinha um fim utilitário - ainda que, dentro de uma perspectiva contemporânea, fossem completamente desproporcionais aos fins visados. Drácula cometeu várias atrocidades por simples acesso de ira, mas a maioria de suas barbaridades tinham um propósito preventivo ou pedagógico (e, ao que tudo indica, produziam os resultados desejados). Assim, diante do excesso de frescuras e melindres que assomam toda vez que alguém menciona Vlad Tepes, minha reação habitual é dar de ombros e fazer minhas as palavras do Drácula de Mel Brooks: They had it coming. Ademais, fica bem mais fácil compreender o comportamento do personagem quando se analisa as condições em que ele cresceu e viveu. Não sou adepto do sociologismo - de grande aceitação, atualmente - que prega que todo comportamento desviante pode ser explicado como produto do meio em que a personalidade do indivíduo se desenvolveu (e.g., foda-se quem tentar me explicar que Elias Maluco ou Fernadinho Beira-Mar mandavam esquartejar gente viva porque não podiam comprar tênis Nike quando eram crianças ou porque não eram abraçados por mamãe e papai), mas estamos falando de um sujeito que viveu em cativeiro turco dos 12 aos 16 anos, graças a um tratado celebrado entre seu próprio pai e seus inimigos islamitas (o qual, diga-se de passagem, foi quebrado pelo paizão enquanto Vlad ainda estava em cativeiro); que foi traído por aliados políticos, amigos próximos e parentes e viu seu irmão mais novo (com quem ficou preso durante a adolescência) se tornar um de seus maiores inimigos; e que chegou ao poder em um país comandado por uma aristocracia que fazia Paulo Maluf parecer um monumento à ética e à lealdade. Para parafrasear o Al Capone do De Niro, tratava-se de um meio onde eram bem mais fácil conseguir as coisas com uma palavra gentil e tortura excruciante do que só com uma palavra gentil. Eram circunstâncias, enfim, onde a única maneira de se impor e concretizar alguma coisa como governante era através do máximo de terror possível. Nem fodendo ele teria durado o tempo que durou (45 anos, um idade avançada para os homens públicos de sua família) se tivesse adotado a filosofia de "give peace a chance" que muitos manés acham que é sempre a melhor atitude.

Talvez sejam as complexidades e contradições do personagem, o contexto histórico de intrigas bizantinas onde ele viveu (e, como eu disse, viveu bastante e governou por muito tempo para os parâmetros da Valáquia) ou a própria brutalidade e intransigência do homem diante do que julgava lapsos morais (com a qual, admito, sinto certa afinidade às vezes, como creio que ocorre com a maioria das pessoas, embora pouquíssimas confessem) que tornem Vlad Tepes minha figura histórica preferida. Ou talvez seja porque o primeiro livro "de verdade" que eu li foi o Drácula de Stoker, quando tinha nove ou dez anos de idade.

O que nos leva à visão demonizada com que a figura histórica costuma ser vista: tende-se a achar que o vampiro de Stoker foi fortemente inspirado pelo personagem histórico. Como o Drácula de Stoker era, basicamente, o mal encarnado, a consequência é o Drácula histórico (de quem, justiça seja feita, pouquíssimas pessoas fora da Europa Oriental tomariam conhecimento se não fosse pela romance gótico do irlandês) ser visto, igualmente, como o mal encarnado. A verdade, contudo, é que Stoker já tinha o livro praticamente delineado (o nome do vilão, sutilmente, seria Conde Wampyre) quando ouviu falar no monarca romeno, colheu alguns eventos históricos (alguns citados corretamente, outros nem tanto) e os incluiu na história para lhe dar um verniz de autenticidade, e mudou a primeira porção do livro da Styria para a Transilvânia. Embora discorde, entendo os motivos da imagem vilanesca que o personagem histórico assumiu para o público.

Sempre me frustrou, contudo, o fato de nunca terem feito um filme decente sobre o personagem, pois a biografia da figura é matéria prima fuderosa para um bom roteirista e um bom diretor. Nem precisava ser um filme excelente - afinal, figuras históricas muito mais relevantes, como os supracitados Alexandre, o Grande e Genghis Khan (Mongol foi um dos negócios mais broxantes que vi este ano, embora não seja propriamente um filme ruim) até hoje não tiveram uma cinebiografia que lhes fizesse justiça. Júlio e Ótavio César precisaram de uma série de 25 episódios de uma hora (o fantástico Roma, da HBO) para explorar parte de suas vidas com a riqueza merecida.

Quando li sobre o telefilme americano Dark Prince: The True History of Dracula (lançado no Brasil com o título Princípe das Trevas: A Verdadeira História de Drácula), em 2000, me empolguei. O fato de ser um telefilme já não era bom presságio, mas preferi esperar o melhor;- o Salem's Lot de Tobe Hooper também foi feito para a TV, numa época em que os níveis de tolerância a violência na televisão americana eram bem mais rígidos, e é um de meus filmes de vampiro preferidos. A informação, que surgiu, depois, de que o filme tinha apenas 90 minutos de duração, também não foi muito encorajadora, mas continuei otimista. Afinal, Witchfinder General é um filme histórico excelente, sobre um período igualmente complexo e focado num personagem igualmente infame, e tem duração menor do que isso. Quem sabe não podia acontecer coisa semelhante? A escolha do magricela alemão Rudolf Martin também não inspirou muita confiança. Afinal, além de não ter a menor semelhança física com o personagem histórico, o ator só precisava de uma cabeleira black power para se enquadrar no conceito clássico de "cotonete de orelhão". E uma coisa sobre Vlad Tepes é indiscutível - o sujeito tinha que ter um porte físico razoavelmente parrudo. Porque, obviamente, ninguém consegue participar de vários combates de armadura e espada (com bons resultados, pelo menos) se tiver a massa muscular da Kate Moss. Mas permaneci indevidamente otimista - de repente baixava o De Niro no cara, pensei, e ele ganhava uns dez quilos de músculo para interpretar o personagem.

Pois é. Meu otimismo foi completamente idiota. O filme, embora tenha suas virtudes, passa boa parte do tempo numa frescura sobre a Igreja Ortodoxa apoiar ou não o filho de Drácula para ser sucessor ao trono (nada a ver: quem decidia isso era um conselho de boyars [a aristocracia romena]). Tal frescura é explicada pelo fato de o príncipe ter se convertido ao catolicismo romano (outra bobagem: a conversão de Drácula ao catolicismo romano, para conseguir apoio político e militar do rei húngaro, Matthias Corvinus, causou alguma antipatia, mas nada muito relevante) e pelas suspeitas dos sacerdotes ortodoxos de que ele seja o Anticristo (!), devido, além de suas atrocidades, a uma lenda (completamente inventada pelo roteirista do filme) de que uma imagem da Virgem chorou sangue quando ele nasceu (além de inventada, idiota; se eu estiver errado, podem me corrigir, mas creio que Igrejas Ortodoxas tem ícones, não estátuas de santos). A história também se atém muito à relação entre Drácula e sua esposa, Lídia (o que também não faz muito sentido, pois era comum os voivodes da Valáquia terem uma cacetada de concubinas, de modo que a relação entre os dois é só uma maneira anacrônica de tornar o personagem mais "contemporâneo"), a princesa que, reza a lenda, cometeu suicídio se jogando no rio (o filme também conta uma versão totalmente infiel ao folclore romeno); passa muito tempo explorando a inimizade entre Vlad e seu irmão Radu, que se tornou um vassalo do sultão turco e passou boa parte da vida tentando tomar o trono da Valáquia (igualmente sem propósito: Radu, o Belo, como o rapaz era chamado, acabou destronando o irmão, mas morreu de sífilis, bem antes de Drácula; além do mais, a história do Empalador tinha intrigas bem mais interessantes do que o manjado "irmãos que se tornam inimigos"). O pior de tudo, entretanto, é que o roteiro se desdobra (a história da virgem chorando sangue é só um exemplo) para associar o Drácula histórico a vampirismo e ao Drácula de Stoker, coisa que, como já mencionado, não tem o menor cabimento. Enfim, o filme passa uma hora e meia tentando fazer o que o Drácula de Coppola fez em cerca de cinco minutos (e, por mais defeitos que tenha, o Drácula de Coppola nunca alega ser um relato fidedigno da vida do Drácula real). O Dark Prince, apesar de ser "a verdadeira história de Drácula", passa a maior parte do tempo tentando ser prólogo de um filme de vampiro - e filmes de vampiro com o Drácula já existem de sobra. E, puta que o pariu, dava pro Rudolf Martin, se não queria levantar peso, pelo menos ter colocado um bigode postiço? A imagem mais conhecida de Vlad III mostra um cidadão com um bigode de deixar o Belchior com inveja, e nem isso os caras puderam providenciar? O filme não é horrível, apesar de minhas críticas; se tiver oportunidade, veja. Trata-se apenas de um filminho mediano que tinha potencial para ser excelente, o que me deixa muito mais frustrado que um filme simplesmente fuleiro.

"Bom", pensei, "a vida é assim mesmo. Quem sabe inventam uma forma de congelar as pessoas criogenicamente antes que eu morra e, daqui a 103 anos, façam um filme decente baseado na vida de Vlad Tepes e eu possa ser ressuscitado para vê-lo..." Conformei-me com o fato até que, alguns anos mais tarde, descubro que, em 1979, foi feito um filme romeno sobre a vida do personagem. Aí me animei. Afinal, na Romênia, Vlad Tepes é visto como um herói patriótico. E o filme foi feito durante o regime de Nicolae Ceausescu, outra preciosidade inspirada pela "obra" de Marx. Ceausescu era um filho da puta que, embora com menos notoriedade no ocidente, perpetrou atrocidades da mesma qualidade que as de Stalin, Mao, Pol Pot e aquele filho da puta com óculos de vovozinha da Coréia do Norte e "governou" a Romênia de 1974 até 1989, quando a moçada finalmente surtou, derrubou o escroto e o fuzilou (junto com a besta-fera de sua esposa, Elena) em público, para a alegria geral de todos (um detalhe hilariante, para os amantes do humor negro: o casal era tão querido que centenas de pessoas se ofereceram para participar do esquadrão de fuzilamento; o esquadrão, na hora do vamos ver, estava com tanta boa vontade para fazer o serviço que nem esperou o casal ser amarrado e vendado, como é de costume, mandando bala logo que os dois entraram na linha de fogo). O fato de o filme ter sido feito durante seu regime, entretanto, me serviu de alento em um ponto: pelo menos a obra era menos propensa a demonizar o protagonista, já que estava sendo feita num país que o tinha como herói e durante o governo de um indivíduo que, francamente, fazia o Empalador parecer Martin Luther King.

Infelizmente, levei um tempão para finalmente ver o filme, pois ele nunca foi lançado oficialmente no ocidente e a única maneira de vê-lo era fazendo o download de um bootleg em romeno e sem legendas. Felizmente, há alguns meses, algum romeno bem-aventurado teve a cortesia de fazer legendas em inglês e disponibiliza-las na internet. As legendas são péssimas (o tradutor obviamente tinha um conhecimento limitado de inglês), mas não vou esculachá-las, pois é um daqueles casos em que se aplica o ditado popular sobre cavalo dado.

Bem, de fato, o filme não demoniza o príncipe. E esse é o problema. O filme não apenas não demoniza o príncipe, como se esforça para fazer o espectador crer que todas as histórias sobre suas tendências mais anti-sociais foram distorcidas ou inventadas descaradamente pelos boyars, pelos turcos e pelos comerciantes alemães da Transilvânia (que, aqui, fazem o papel do "burguês reacionário e decadente", em contraponto à "ditadura do proletariado" de Drácula). Eu sempre achei que o personagem até que se prestava a propaganda comunista (tendo em vista sua repugnância à aristocracia, respeito pelos camponeses e completa desconsideração de status na hora de impor penas), mas o roteiro de Mircea Mohor forçou a barra. Além do mais, a exemplo da obra brasileira Eu Matei Lúcio Flávio (objeto de excelente resenha no blog Filmes para Doidos) o filme é meio difícil de compreender para quem não tem muita noção do contexto histórico em que se passa. A diferença é que, para quem conhece o contexto, Eu Matei Lúcio Flávio é espetacular, ao passo que Vlad Tepes é irritante. Mas vamos ao filme.

A história começa com um letreiro que explica que é 1456 e o Império Otomano acaba de ser frustrado em sua tentativa de invadir o continente Europeu graças aos esforços de Iancu de Hunedoara, que dá uma sova nos turcos em Belgrado. Três dias depois da vitória, contudo, este morre de peste bubônica, deixando o caminho livre para novas investidas do sultão Mehmed II, o Conquistador (chamado de Mahomed II no filme) e a Valáquia, enfraquecida pelas disputas internas entre os boyars, particularmente vulnerável.

Corta para um bando de cavaleiros que marcham de encontro a um cidadão grisalho que não sabemos quem é (e, mesmo depois de ver o filme umas três vezes, não logrei identificar o indivíduo por nome). Os cavaleiros anunciam que são cidadãos de Tirgoviste e desejam se unir ao exército de Iancu de Hunedoara. O grisalho anuncia que vai levá-los ao "capitão" de Iancu...

O "capitão" de Iancu de Hunedoara é ninguém menos que Vlad Drácula. E sua primeira aparição já me deixou otimista - além da semelhança física razoável, Stefan Sileanu tem porte físico e interpreta o personagem com maneirismos que, imagina-se, um líder político e militar do período tivesse. Drácula resmunga, pragmático, que, com a morte de Hunedoara, qualquer esperança de ajuda externa se foi e ele agora vai ter que se virar sozinho. Sem tempo para choramingar, o aspirante a príncipe manda seu escudeiro grisalho (de quem, repito, até agora não sabemos o nome) sair pelas vilas conclamando todos aqueles dispostos a morrer pela pátria a se unir ao seu exército.

A estratégia parece funcionar, pois na cena seguinte, Drácula já está partindo para o quebra-pau, comandando um exército de cavaleiros rumo ao combate com seus inimigos (que, também, não sabemos quem são) a toda velocidade.

Antes que o combate comece, entretanto, o líder do exército inimigo é sacaneado e a batalha acaba preliminarmente: numa cena que, não sei por que motivo (acho que lembra as batalhas de Monty Python and the Holy Grail), me mata de rir, um de seus próprios homens, sem a menor cerimônia, acerta o vilão pelas costas com uma lança.

O exército do falecido não perde tempo e logo se rende a Drácula, jurando vassalagem ao novo monarca. O engraçadinho que deu cabo do príncipe anterior ainda se apresenta contando vantagem e esperando recompensa por ter "aberto o caminho de Vossa Alteza ao trono". Vlad, entretanto, não enxerga a situação de forma tão irreverente: ele manda enterrarem o defunto rival com "as honras devidas a um Lorde" e "matar o assassino com a mesma lança que ele usou para assassinar". "Se eu não tivesse feito isso, Vossa Alteza o teria", desespera-se o traidor, acabando de perceber que vai tomar onde o sol não bate e tentando evitar desaconchego de tamanha gravidade. "Eu não jurei lealdade a ele", replica Drácula, secamente. Como diria Jorge Amado, "se fodeu".

Drácula aceita os juramentos de vassalagem dos boyars, poupa o exército do inimigo, liberta os prisioneiros de guerra deste e, mostrando logo que não gosta de fazer corpo mole, convoca uma reunião do conselho de boyars para dar as ordens.

Faço aqui uma pausa para começar minhas ladainhas. Em primeiro lugar, trata-se de uma sequência inicial em que os defeitos e virtudes do filme são sintetizadas. As virtudes: boa direção, edição, fotografia e interpretações. Os defeitos: Drácula é mostrado como um indivíduo bem mais generoso do que ele realmente era e a trama só é compreendida por quem sabe alguma coisa sobre a biografia do personagem. Quem não sabe, a essa altura do filme, já deve estar se perguntando coisas como "quem caralho era Iancu de Hunedoara", "quem era aquele sujeito com quem Drácula ia lutar" e "qual era o motivo da luta?" Para isso fazer sentido, é necessária uma superficial lição de História ministrada pelo tio Kurt.

Em 1456, o Império Otomano estava, de fato, em franca expansão. A maioria dos Estados Europeus, contudo, tendo suas próprias broncas internas para resolver (e.g., A Guerra das Rosas na Inglaterra e a recuperação dos prejuízos da Guerra dos 100 anos na França), ficou indiferente à ameaça otomana; mesmo após o pontificado de Pio II, que considerava os turcos a "maior ameaça à Cristandade" e tentava veementemente ressuscitar o espírito das cruzadas na luta contra os otomanos, a maior parte da Europa permaneceu, basicamente, de pau na mão. João Hunyadi/Hunedoara Janos/Iancu de Hunedoara era um nativo da Transilvânia que, não obstante suas origens humildes, conseguiu, graças a muita habilidade política e militar, se tornar um dos mais prestigiosos líderes da Europa Oriental, alcançando a posição de príncipe da Transilvânia e chegando a se tornar, durante a menoridade do rei húngaro Ladislau V, o "Póstumo" (alcunha decorrente de seu suspeito nascimento após o óbito do pai), regente e governador-geral da Hungria. Hunyadi foi um dos poucos a concordar com o ponto de vista do papa e se tornou um dos principais combatentes à ameaça otomana. Foi também, um dos mentores políticos e militares de Drácula, o que, em si, é um fato dos mais interessantes.

Isso porque tudo indica que o levante de boyars que resultou na morte de Vlad II e Mircea, irmão mais velho de Drácula, enquanto este se encontrava em cativeiro turco, foi articulado por Hunyadi, que não via com bons olhos a política "em cima de muro" de Vlad Dracul em relação aos turcos e preferiu colocar Vladislav II no trono da Valáquia. O sultão, apesar da inutilidade dos reféns, cujo pai agora estava morto, preferiu manter Drácula e Radu vivos e "cultivá-los", considerando a possibilidade de tê-los como aliados caso um dos dois viesse a conquistar o trono da Valáquia posteriormente. Em 1448, aos 17 anos, Vlad foi libertado do cativeiro e colocado pelos turcos no trono da Valáquia; o primeiro reinado durou pouco tempo, sendo o príncipe destronado pelo próprio Hunyadi, que invadiu o país e reempossou Vladislav II. Drácula fugiu para o principado da Moldávia, ficando sob a proteção de seu tio, o príncipe Bogdan, até este ser assassinado por inimigos políticos em 1451 (pois é, a vida desse pessoal era repleta de fortes emoções). Vlad, então, decidiu optar pela filosofia do "mandando o bom senso às favas" e fugiu para a Hungria, então controlada por seu inimigo Hunyadi. Este acabou ficando impressionado pelos conhecimentos que o rapaz tinha sobre o funcionamento do Império Otomano (adquirido graças aos anos que passou como refém do sultão) e pelo ódio deste por Mehmed II, e acabou se tornando seu padrinho político. Contribuiu para o início dessa bela amizade o fato de o até então preferido de Hunyadi, Vladislav II, estar adotando uma política progressivamente pró-otomana.

Nada disso explica, contudo, como Vlad conseguiu ignorar o fato de que seu novo mentor havia sido, pelo menos, um dos autores intelectuais do homicídio de seu pai e seu irmão. Em minha opinião, foi basicamente lógica e pragmatismo político: Hunyadi estava simplesmente cuidando dos próprios interesses e não tinha nenhuma dívida de lealdade para com Vlad Dracul, ao contrário dos boyars vira-casaca que de fato o executaram. E suspeito que foi mais a falta de lealdade dos boyars e menos o amor ao paizão (que, como já mencionei, o deixou como refém dos turcos e, posteriormente, violou tratados, colocando sua vida em risco) que suscitou o ódio de Drácula pela aristocracia de seu país.

Enfim... em 1456, Mehmed II tentou invadir a Hungria através de um ataque náutico via Belgrado. A defesa desta ficou a cargo de uma força militar comandada por Hunyadi, enquanto Drácula, comandando um exército majoritariamente composto por mercenários romenos, ficou incumbido de proteger o flanco oriental da Hungria, na Transilvânia. Ficou implícito que Drácula tinha carta branca para destronar Vladislav II quando achasse conveniente, reforçando a resistência à invasão turca, e foi exatamente isso que ele fez: logo que os turcos foram derrotados por Hunyadi em Belgrado, Vlad não perdeu tempo lamentando a morte de seu padrinho político. Ele avançou Valáquia adentro e, após uma série de baculejos, capturou e matou Vladislav II e assumiu o trono. É essa a batalha que inicia o filme e já vou começar a reclamar.

Primeiro: porra, nada é abordado sobre a infância de Drácula, sua vida de refém no Império Otomano nem sua complicada relação com Hunyadi (como já disse, o espectador sem interesse histórico na região provavelmente nunca nem ouviu falar neste indivíduo). Segundo: não houve nada de "convocação dos camponeses a se unir a Drácula", prontamente atendida pelo campesinato - isso é só picaretagem típica de propaganda política. Como mencionado, Vlad III conquistou o trono com um exército de mercenários, coisa que o governo comunista romeno certamente não admitiria que fosse mostrado no filme. Então, vá lá, até que dá pra entender. Terceiro: embora a reação do Drácula do filme ao sacana que matou Vladislav II pelas costas realmente tenha muito a ver com a personalidade do voivode (o homem tinha uma intolerância inflexível com deslealdade), o evento é totalmente inventado. A verdade é que Drácula capturou Vladislav e o executou (provavelmente depois de torturá-lo barbaramente). Quarto: a boa-vontade de Drácula para com os boyars que viraram a casaca rapidamente... bom isso tem a ver com outro trecho do filme onde a história é completamente distorcida, então cheguemos lá primeiro. Só posso adiantar que os partidários de Vladislav II teriam um destino bem menos aprazível que o mostrado no filme.

Como dito, o príncipe recém-coroado não perde tempo comemorando e parte logo para o trabalho, reunindo os boyars e dando as ordens. Primeiro, ele indaga quantos príncipes cada um deles já viu no trono da Valáquia e cada um se sai com um número maior que o outro. Emputecido, Drácula passa na cara dos cretinos que a culpa é deles, que vivem virando a casaca (não nesses termos, mas trata-se de um diálogo que, segundo várias fontes, realmente ocorreu) e deixaram o país no estado lastimável em que se encontra. Em seguida, determina que todos os presos devem ser libertados e os crimes esquecidos; a partir de agora, contudo, aqueles que violarem a lei serão punidos severamente. E é nesse momento que eu digo, "vão pra porra". Aí já é querer transformar o homem num santo. A parte sobre a violação da lei ser punida severamente procede, com toda a certeza; já a parte sobre "vamos ser legais e perdoar a quem nos tenha ofendido" é tão ridícula que não tem nem graça. Isso nunca aconteceu. O príncipe determina a formação da armaş, sua guarda pessoal. Após a reunião, o voivode chama o sujeito que escolheu para chefiar a armaş e manda que este despache homens de confiança para serem "seus olhos" em todos os povoados do país (mais ou menos como o regime que financiou o filme tinha a Securitate, por coincidência, mas esse detalhe, pelo menos, é verídico).

Enquanto isso, os boyars já estão reclamando das ordens do novo governante e ponderando se mudar de lado foi realmente a melhor decisão. Acabam decidindo que, mais cedo ou mais tarde, vão acabar domando o rapaz...

Após várias cenas de Drácula passeando pela zona rural da Valáquia (que, de fato, é muito bonita) e observando o trabalho dos puros, inocentes e sofridos camponeses (demonstrando qual é a verdadeira afinidade do príncipe: ele está ali para governar pelos trabalhadores, não pelas oligarquias opressoras, companheiros), surge o primeiro momento de conflito: comerciantes da cidade de Braşov, ao passear pela Transilvânia, têm sua mercadoria furtada e vão se queixar com o príncipe. Drácula promete resolver o problema e dá uma esporro nos boyars, que só querem começar as reuniões ao meio-dia (mostrando que são um bando de parasitas indolentes, vivendo do trabalho suado dos camponeses. Vá lá, a alegoria é pouco sutil, porém válida: os boyars realmente eram assim). Em seguida, através da armaş, localiza os ladrões e devolve a mercadoria roubada aos comerciantes, deixando os meliantes como edificante lição de moral, na beira da estrada:


Não sei por que não foram fiéis à anedota que provavelmente inspirou a cena: conta-se que um comerciante resolveu passa a noite em Tirgoviste, sendo informado que podia deixar sua carruagem na rua, pois não havia risco de furto. Na manhã seguinte, dez ducados de ouro haviam sido furtados da carruagem do comerciante que, inconformado, foi reclamar com o voivode. Drácula, fiel adepto da filosofia de que "contra a força bruta não há argumentos", usou um método dos mais eficientes para resolver o problema: divulgou que, caso o larápio não lhe fosse entregue em 24 horas, julgaria toda a população da cidade responsável e agiria de acordo. O ladrão foi logo entregue ao voivode, sendo prontamente empalado, e o ouro, devolvido ao comerciante. Este, porém, observou que havia um ducado a mais do que havia sido furtado e o devolveu ao príncipe. Drácula, satisfeito observou que a moeda a mais havia sido colocada de propósito e que, se o comerciante não a tivesse devolvido, acabaria empalado junto com o ladrão. Acredito que a história não foi contada assim porque, como todos sabem, comunistas não têm senso de humor...

Em seguida, temos um fato histórico distorcido que é a maior picaretagem do filme. Na verdade, é a segunda maior picaretagem, mas é de uma cara-de-pau tão grande que chega a ser admirável. Fato histórico: Vlad Tepes odiava profundamente mendigos e vagabundos de qualquer espécie. Ele os julgava pior que os ladrões, porque, em suas palavras (paráfrase, pois, por mais interessante que ache a figura, não vou ficar decorando o que ele dizia) "se você for mais ágil ou mais vigoroso que salteador da floresta, pode escapar do assalto; mas esses indivíduos, pedindo insaciavelmente, roubam o dinheiro conseguido com o suor do trabalhador tão destrutivamente quanto qualquer ladrão." Para resolver tal problema, o monarca adotou uma solução tão simples quanto a utilizada para localizar o ladrão do episódio anterior: mandou a armaş reunir todos os mendigos da Valáquia e trazê-los para um grande banquete. Enquanto os mendigos lambiam os beiços, Drácula resolver marcar presença e, após muitas saudações empolgadas, indagou: "Vossas Senhorias gostariam de jamais ter preocupações ou pesares novamente?" A resposta foi um sonoro "Sim", ao que o voivode replicou "Pois assim será" e mandou trancar a sala com todos os mendigos dentro e incinerá-la, queimando os pedintes vivos e resolvendo o "problema social". Realmente, fica meio difícil falar em defesa do príncipe neste caso, mas há quem especule que a medida teria um caráter sanitário: o número elevado da população de mendigos na Valáquia, à época, facilitava a proliferação de epidemias.

Versão do filme: aparentemente, o roteirista levou a equiparação que o Empalador fazia entre mendigos e ladrões ao pé-da-letra: logo após resolver o problema dos comerciantes, Drácula fica emputecido com os ladrões, que, explica um diálogo entre o príncipe e seus homens de confiança, passam o dia disfarçados de mendigos e praticam crimes à noite. E, assim, reúne todos os mendigos do país para um banquete. Isso mesmo: numa chicana tão descarada que chega a ser linda, o roteiro do filme afirma que sim, Drácula matou todos os mendigos da Valáquia, mas isso foi besteira, pois eles eram mendigos de dia e assaltantes à noite e, como todos sabem, bandido bom é bandido morto. Caramba, eu sou o único sujeito que conheço que defende o homem e nem eu conseguiria me sair de cara lisa com uma racionalização tão obviamente furada. É sério: tem até uma cena em que um mendigo "perneta" tira a perna de pau, revelando, por baixo dela, uma perna perfeitamente saudável e outra em que um mendigo "cego" tira a venda dos olhos, revelando não ser cego porra nenhuma. Desse jeito, fica impossível não torcer pros putos serem queimados. Mal sabem os cretinos que Drácula está entre eles, disfarçado. Testemunhando toda essa canalhice e concluindo que tinha razão, o príncipe resolve concluir o banquete com o mesmo desfecho da história real (menos a "charada" de mau gosto, pois como eu já disse, comunistas não têm senso de humor).

Seguimos para a MAIOR picaretagem do filme. Os boyars, concluindo que o novo príncipe está radical demais para seu gosto, resolvem conspirar para dar cabo do voivode, planejando pegá-lo de surpresa, dar um golpe de Estado e colocar outro príncipe, mais maleável, em seu lugar. A primeira pergunta que vem à cabeça do espectador é "por que, exatamente?" Ora, até agora, a única coisa "ameaçadora" que ele fez à aristocracia foi dar esporro. Ele empalou ladrões e queimou um monte de mendigos vivos, mas não logro vislumbrar como isso seria uma ameaça ao status quo. E, na vida real, a situação era idêntica (a diferença é que os mendigos que Drácula queimou eram só mendigos mesmo, de modo que ele é um precursor intelectual daqueles moleques de Brasília que tocaram fogo no índio pataxó "achando que era um mendigo"). Mas eis que, enquanto os monopolizadores dos meios de produção e exploradores do campesinato estão com a farinha, Drácula já vem com o bolo não mão... ou a pizza, ou seja lá o que for. Enfim, Drácula chega de supresa e pega todo mundo no flagra, barbarizando geral.

Alguns dos boyars mostram toda sua bravura correndo para uma igreja e se escondendo debaixo da batina do padre. O voivode, entretanto, não se curva diante desses sacerdotes, que, afinal, nada mais são do que um instrumento de alienação das massas, prendendo imediatamente os covardões.


O padre se revolta com a falta de respeito de Drácula, mas este parte para um bate-boca teológico com o traficante do ópio do povo. Tudo bem, piadinhas anti-comunistas à parte, a cena é muito boa e realmente faz justiça à personalidade de Vlad Tepes: os argumentos utilizados pelo príncipe para rebater o discurso religioso manjado do padre (em síntese "Vossa Alteza está desrespeitando a casa de Deus e atentando contra os Dez Mandamentos") realmente se coadunam com o que o personagem real utilizava como "fundamentação teológica" para suas práticas, quando travava discussões com alguns clérigos que o repreendiam (geralmente antes de dar cabo dos mesmos). Ele alega, por exemplo, que "eles deviam ter buscado a Igreja antes de errar, não depois", que "a vontade de Deus é que os homens sejam retos, mas não se obtém retidão através de pedidos. É através do medo e de exemplos, assim como os fiéis vêm à Igreja por temor ao inferno, não por amor a Deus", finalizando com "se for necessário matar 10 homens para que 100 se turnem justos ou 100 para que 1000 corrijam sua conduta, assim será feito" e acrescentando que está apenas castigando aqueles que descumprem os dez mandamentos e que o país deve estar fortalecido quando a ameaça muçulmana chegar, o que não será logrado através de boas ações.


Presos os conspiradores, Drácula condena todos à mesma pena: execução por empalamento, provando de forma inequívoca que, na Valáquia do século XV, bandido, literalmente, tomava no cu. Um de seus homens, cujo irmão é um dos condenados, tenta dissuadir o príncipe, alegando que "empalamento é punição para ralé". Realmente, trata-se um argumento dos mais sólidos e é uma supresa que não faça o príncipe mudar de idéia. Bom, na verdade, faz (e esse "gracejo" é mais um fato histórico): inspirado pelo comentário, Drácula decide que a altura da lança com que cada infeliz será empalado corresponderá a seu status, "para que todos vejam de longe que minha justiça é a mesma para todos". E assim, o Empalador se livra da aristocracia que tanto detesta. Inexplicavelmente, assim que as execuções vão começar, o filme corta para um bando de boyars que tiveram a sorte de chegar atrasados à reunião dos conspiradores e, portanto, tiraram o deles da seringa. Ou, para ser mais literal, de estaca de madeira. Pela maneira tosca que a transição é feita (apesar de todas as minhas reclamações sobre a falta de exposição e "licenças dramáticas" do filme, tenho que reconhecer que a edição é muito competente), e pelo logotipo de televisão visível na cópia que vi, acredito que se trata de uma edição censurada. O que, há de se concluir, é meio imbecil, tento em vista que a TV era estatal e o filme foi financiado pelo Estado. Eles censuraram um filme cuja produção eles mesmo supervisionaram? Vá lá que lógica, coerência e bom-senso não são o forte de ditaduras marxistas, mas até para a turma de um maníaco desvairado como o Ceausescu, isso é tabacudo demais.

Enfim, os aristocratas sobreviventes, notando, sagazes, que a atual situação não é das mais favoráveis à continuidade de suas existências, chegam ao consenso de que é melhor procurar outras vizinhanças e vão atrás de um "pretendente" ao trono que decidem apoiar. O filme também não deixa muito claro no momento, mas esse pretendente era Dan III, do clã Daneşti, o mesmo do falecido Vladislav II e rivais históricos da família de Drácula (os Draculeşti; pois é, o pessoal não era dos mais criativos) na reivindicação do trono da Valáquia.

Mas paremos por um instante e retornemos cinco parágrafos. Lembra que eu falei que os eventos narrados acima são a maior picaretagem do filme? "Como assim?" alguém poderia indagar. "Quer dizer que Vlad, o Empalador, não matou mesmo toda a aristocracia de seu país. Hmmm... Bem que eu achei esse negócio meio exagerado". Não, isso é verdade. Drácula realmente empalou praticamente toda a aristocracia da Valáquia. A picaretagem é que não houve nenhuma conspiração que motivou o castigo. Lembra quando eu falei, no começo da resenha, que Drácula é retratado no filme como bem mais misericordioso com os inimigos do que, de fato, era?

O que aconteceu na realidade foi o seguinte: desde que assumiu o trono, Vlad III já tinha um profundo ódio pelos boyars - o que é perfeitamente compreensível, levando em conta que os escrotos mataram seu pai, cegaram seu irmão mais velho a ferro em brasa e o enterraram vivo - e, tudo indica, nenhuma intenção de dar a outra face. Ele simplesmente esperou algum tempo para consolidar seu poder antes de dar o bote. Este bote ocorreu na Páscoa de 1457, quando o príncipe convocou a maior parte dos boyars da terra para uma suntuoso banquete, bem como os cidadãos de Tirgovişte. E os debilóides foram. Sinceramente, depois daquele episódio com os mendigos, eu evitaria qualquer festividade promovida pelo monarca. Talvez por isso eu seja um mero funcionário público que escreve abobrinhas sobre filmes quando tem tempo livre, e não um aristocrata europeu na iminência de conhecer intimamente a extremidade pontiaguda de uma estaca. Servido o banquete, quando todo mundo estava curtindo a vida e comendo do bom e do melhor, Vlad fez uma triunfal entrada a cavalo, cumprimentando todos com um aceno de seu chapéu. Que era o sinal para seus soldados marcarem presença, estragando a festa, subjugando todos os boyars e os principais cidadãos da capital (que estiveram envolvidos na execução de Vlad II e Mircea) e dando início ao verdadeiro festejo que o príncipe tinha em mente: dar cabo de todo mundo. Drácula, contudo, era um homem prático: a princípio, ele só empalou os idosos, os inválidos e as crianças. Os adultos com alguma aptidão física ele levou acorrentados até o Castelo Drácula, em Poenari (a cerca de 300 quilômetros). Os que não morreram no caminho foram obrigados a fortificar e ampliar o castelo (o que levou, especula-se, de dois a três meses). Ao final do suplício, os que tiveram a força e determinação para sobreviver foram recompensados com o já popular empalamento. Um pouco diferente do "eles conspiraram e tiveram o castigo merecido", mas, sinceramente, não acho o fato tão horripilante assim. Afinal, os adultos e idosos participaram do brutal assassinato do pai e do irmão mais velho de Drácula. As crianças... bom, é foda, mas o velho argumento fazia perfeito sentido para a época: elas provavelmente buscariam vingança quando crescessem. E quanto ao trabalho forçado... tenho que admitir que dei boas risadas quando soube dessa história pela primeira vez. Para que simplesmente matar um bando de almas sebosas quando, antes disso, você pode utilizá-los como mão-de-obra em um trabalho de importância estratégica e sem custar um centavo ao erário? Além de picaretagem, achei a distorção covarde e desnecessária - posso até entender que omitissem a morte das mulheres e crianças para tornar o personagem mais simpático, mas os boyars eram um bando de filhos-da-puta que, além de terem matado a família de Drácula, estavam há anos abraçando a política do "vamos encher o bolso de grana enquanto o resto do país se fode". Alguém realmente tem pena desse tipo de gente?

Resolvido o problema, o príncipe resolve reorganizar seu ministério. Mais uma vez distorcendo a história para torná-la mais "ideologicamente pertinente", o filme mostra um Drácula que, ao invés de escolher criteriosamente os novos boyars entre seus homens de confiança (como fez, com boa dose de sensatez, na vida real), convoca sua rapaziada e solicita que aqueles que se julgarem dignos se ofereçam para os cargos. É verdade que ele deixa claro que, quem não cumprir suas funções com o máximo de presteza vai ser punido, como diria o Borat, da maneira sentida por 9 entre cada 10 condenados da Valáquia, mas mesmo assim... é um negócio meio idiota, bonitinho demais e difícil de engolir até mesmo para quem não sabe nada sobre o personagem. Alguns intrépidos indivíduos (e digo isso sem nenhum ironia, pois o homem, evidentamente, era adepto da política do "tolerância zero" com trabalho feito nas coxas) se oferecem e assim o novo conselho é composto.

Corta para representantes do capitalismo imperalista, reacionário e opressor das massas (tudo bem, vou parar com essa babaquice; estou começando a parecer com aquele camponês anarcossindicalista de Monty Python em Busca do Cálice Sagrado), os governantes de Braşov (cidade saxônica da Transilvânia, de onde vieram os mesmos comerciantes cuja mercadoria roubada Drácula recuperou, os quais, só para não deixarmos de perceber como esses filhos da puta são ingratos, estão presentes), em reunião, ficam indignados com as novas e absurdas normas impostas pelo príncipe da Valáquia: de agora em diante, só será admitida a entrada de mercadorias que não tenham equivalente nacional (Drácula já era um adepto do protecionismo!) e desde que seja permitida a entrada de mercadorias valáquias (que igualmente não tivessem equivalente nacional no principado vizinho, pois o príncipe é justo) mediante o pagamento de igual tributação. "Ora, porra!" exclamam os comerciantes (não exatamente nessas palavras) "Tudo de valor que a gente vende aos turcos tem na Valáquia! E agora? Como vamos auferir lucro e comprar bens caros e supérfluos através de livre-comércio com os filhos da puta que querem invadir nosso continente?" O diálogo não é exatamente assim, mas a sutileza não é muito maior. O roteiro deixa bem claro que os comerciantes de Braşov são um bando de miseráveis mercenários sem um pingo de patriotismo, que pensam unicamente no lucro e em nada mais. E é por isso que eles decidem difamar Drácula por todo o Ocidente, espalhando histórias sobre como ele é um tirano sanguinário e maligno, praticamente um demônio, cujo único prazer é empalar gente inocente e que matou 300 comerciantes de Braşov, com suas mulheres e filhos. "Contemos essas histórias uma, dez, cem vezes, e as pessoas acabarão acreditando," diz um dos comerciantes, quando alguém suscita a possibilidade de acharem a história meio mentirosa. "E é por isso, espectador ocidental cujos olhos foram tapados pela propaganda capitalista", explica o filme, "que o virtuoso príncipe Vlad III é visto como um monstro em seus países, quando na verdade ele era bom, simples e justo. E adorava criancinhas, cachorrinhos, a beleza da natureza e passear pela praia em dias de sol. Tal como o nosso glorioso líder, Nicolae Ceauşescu." Assim, os parasitas sociais resolvem se aliar a Dan III, rival de Drácula na reivindicação do trono da Valáquia e, segundo o filme, igualmente vendido. Enquanto isso, para complicar a situação de Vlad Tepes, os turcos começam a invadir o país e saquear aldeias.

A verdade sobre os saxões era bem mais simples: Drácula realmente era protecionista, estipulando tributação que tornava a vida dos comerciantes das colônias alemãs na Transilvânia bastante difícil. Estes, descontentes, resolveram apoiar e dar guarida a dois dos rivais do Empalador ao trono: o supracitado Dan III e Vlad, o Monge, um filho bastardo de Vlad Dracul. Com a diplomacia que o tornou um astro, Drácula respondeu invadindo a Transilvânia e destruindo várias cidades colonizadas pelos alemães, além de atacar caravanas de comerciantes saxões que adentravam a Valáquia. Mais uma vez: para os padrões da diplomacia contemporânea, pode não parecer a coisa mais bela do mundo, mas, no seu devido contexto, foi uma maneira mais ou menos padrão de resolver atritos de natureza econômica. Poder-se-ia alegar isso e, ainda assim, mostrar o príncipe como um governante que colocava os interesses de seu país em primeiro lugar. Mas, claro, isso poderia dar a impressão de que um sujeito que recebeu a alcunha de "o Empalador" não era exatamente um docinho de côco e resultaria em ambiguidade moral complexa demais para ser abordada em propaganda.

Prosseguindo, Drácula recebe uma convocação do rei da Hungria, que mediará um armistício entre o príncipe e a Transilvânia. O representante enviado, entretanto, acaba amarelando ou sendo enrolado (não fica muito claro) e celebrando um tratado de paz altamente favorável aos comerciantes por tempo indeterminado, contrariando os desejos do princípe, que queria, no máximo, um armistício (mentira: na vida real, Drácula, a fim de manter uma boa relação com o rei da Hungria, cujo apoio político era essencial para manter o trono e resistir à ameaça otomana, acabou concordando em rever sua política tributária e reembolsando os prejuízos causados por seus ataques nas cidades saxônicas; mais tarde, o príncipe romeno acabaria violando o tratado). Drácula engole a raiva e poupa o representante (quando, na vida real, provavelmente executaria o idiota brutalmente).

Entrementes, alguns dos boyars do lado de Vlad, de saco cheio com essa vida de trabalho, decidem se mancomunar com os nobres da Transilvânia. O plano dos traidores é executar o voivode quando ele está fazendo suas orações, na capela do castelo. O príncipe, entretanto, dá uma de Vincent Price e deixa um boneco encapuzado ajoelhado diante do altar, o qual os conspiradores atacam a espadadas, sendo flagrados no ato e tendo destino previsível (esse episódio, embora não seja historicamente preciso, pelo menos é plausível - Drácula tinha um dom quase sobrenatural para farejar complôs).

Irado com a sacanagem dos turcos, que continuam invadindo e atacando aldeias próximas ao Danúbio, apesar de a Valáquia continuar pagando "tributo" de vassalagem ao sultão, para mantê-lo satisfeito, Drácula decide mandar a diplomacia para a profissional do sexo que lhe deu à luz e parar de pagar. Três anos se passam e emissários de Mehmed II vem cobrar satisfações sobre a inadimplência do voivode.

Aqui finalmente temos uma cena em que o filme não adocica o fato em que se baseia. As vítimas variam conforme a fonte (alguns dizem que foram emissários do Vaticano, outras que foram turcos), mas a essência é a mesma: os três emissários adentram o salão do palácio do príncipe para indagar o motivo de não ter havido pagamento do tributo nos últimos três anos. Drácula, curiosamente bem humorado, indaga por que os cidadãos não tiraram seus turbantes, como mandam os bons costumes. Os três zebas respondem que sua religião o proíbe, "especialmente diante de infiéis". Após uma aparentemente gratuita discussão ("E se o vento tirar seus turbantes? Será pecado também?", indaga Vlad. "Sim, mas não muito grande, pois teria sido contra nossa vontade." "Mas se vocês saem ao vento, assumem o risco de ter os turbantes arrancados. Alá não deve ser ofendido, nem proposital nem acidentalmente."), Drácula mostra ser um um homem à frente de seu tempo, mandando uma resposta ao sultão que sintetiza, com perfeição, a máxima de que "uma imagem vale mais do que mil palavras".

HAHAHAHAHAHAHA!!! Badass! Ainda lamento que o filme não contenha a frase de efeito proferida por Vlad antes de mandar pregar os turbantes nas cabeças dos manés ("Eu respeito suas crenças. E quero reforçá-las." O príncipe era praticamente um Bruce Willis medieval.), mas só o fato de terem mantido a história assim (da maneira como o roteiro anda, eu temia que mostrassem os emissários tentando atacar o príncipe, e este fincando pregos nos turbantes "em legítima defesa") já é um ponto positivo para o filme.

Extremamente desgostoso com o rumo das negociações, o sultão manda Yunus Bey (nome islâmico de Thomas Catavolinos, mercenário grego que foi capturado pelos turcos em combate, ficou em cativeiro com Drácula quando este era adolescente e, mais tarde, se converteu ao Islã e se tornou homem de confiança de Mehmed II) para a Valáquia. Quando Catavolinos chega a Tirgoviste, depara-se com uma caravana de carruagens repletas de mercadoria, aparentemente abandonadas. Inquirindo um velhote transeunte sobre o motivo de aquela mercadoria estar abandonada, o grego descobre que não se trata de abandono: os mercadores apenas fizeram uma pausa para almoçar e, como não há mais furtos no país, deixaram, tranquilos a mercadoria desprotegida (fato, ao que tudo indica, verídico; por outro lado, quando se considera a pena para furto e o índice quase inexistente de impunidade na Valáquia de Vlad III, não é de se admirar).

Recebido por Drácula, Catavolinos explica que o tributo foi criado por Murad II, pai do atual sultão, que não tinha vontade de mantê-lo, mas não podia deixar de cobrá-lo, sob pena de demonstrar fraqueza. A proposta de Mehmed II para resolver a desinteligência, explica o grego, é um negócio da China: basta que Drácula não se oponha à passagem de soldados turcos pela Valáquia rumo à Transilvânia e a Hungria. Quando esta for finalmente conquistada, o sultão garante que a Valáquia não será tocada. Tanto era um negócio da China, aliás, que o Empalador histórico, durante um determinado tempo (quando estava consolidando seu poder em casa e eliminando rivais ao trono), aderiu a tal tratado, somente deixando de cumprí-lo quando tinha deixado as coisas suficientemete em ordem para se dedicar integralmente a combater os turcos. Pode parecer hipocrisia, ainda mais quando se leva em consideração que Vlad Tepes se tornou um herói nacional na Romênia basicamente porque impediu que o país fosse ocupado pelos turcos, mas dentro do contexto, era uma questão de bom senso e pragmatismo político: o príncipe chegou ao poder em um país caótico, com uma aristocracia hostil e traiçoeira, vários rivais ao trono, criminalidade vultosa, economia estagnada e forças armadas ínfimas. O apoio da Hungria morreu com Hunyadi e a vizinha Transilvânia não só não ajudava, como apoiava rivais do voivode ao trono. Torna-se perfeitamente compreensível que, em tais circunstâncias, o homem entrasse temporariamente em acordo com os turcos, por mais que lhe desagradasse. Contudo, como já falei reiteradas vezes, o objetivo do filme não é contar uma boa história, com questões intrigantes e personagens complexos, mas apenas fazer propaganda do regime romeno. O Drácula do filme, portanto, responde com um firme "NÃO", alegando que a Valáquia se tornaria "uma ilha num mar muçulmano" e que, mais cedo ou mais tarde, os turcos quebrariam a palavra. Catavolinos insiste, sem sucesso, e, vencido, acaba propondo uma reunião com o sultão na fronteira, em Giurgiu, onde, conversando, os dois governantes acabarão se entendendo. O príncipe acede, pois, afinal, é um homem de extrema boa vontade e sempre aberto ao diálogo com seus opositores. Como era o grande líder, Nicolae Ceauşescu.

Tenho que comentar, ainda, que a cena mostra Catavolinos como um tremendo covarde, que só passou para o lado turco porque achava que o Império Otomano acabaria dominando o mundo. Sem nenhum exagero, todos os diálogos são proferidos pelo ator que o interpreta com uma voz trêmula, tímida e insegura - parece que o homem está prestes a chorar diante de qualquer ameaça. A idéia é que só um pusilânime desprezível acabaria se convertendo à religião do inimigo e se tornando um servo deste. Pelo pouco que sei sobre o personagem, estou inclinado a acreditar que tal retrato é injusto: Catavolinos não era um bundão frouxo que passou para o lado do inimigo por medinho; ele era um mercenário (portanto, só estava defendendo o próprio bem-estar financeiro) dos mais competentes que, após um longo período aprisionado pelos turcos, acabou aderindo à religião destes e adotando sua causa. Parece-me mais plausível que essa conversão tenha ocorrido por convicção genuína (em caso contrário, por que porra um mercenário "mudaria de causa" e permaneceria fiel a esta? À primeira oportunidade, o indivíduo acabaria se voltando contra seu novo empregador, coisa que Catavolinos não fez), tal como se costuma retratar de forma "edificante" em filmes como Dança com Lobos e O Último Samurai. A ótica limitada deste filme, contudo, não consegue conceber tal possibilidade - se o cara foi pro lado dos turcos, só pode ser um covarde sem um pingo de fibra ou princípios. Trata-se, por outro lado, de uma bela lição para aqueles pseudointelectuais que ejaculam na cueca toda vez que um filme iraniano insuportavelmente chato entra em cartaz e criticam o cinema norte-americano por ser "ignorante", "intolerante" e "etnocêntrico".

Drácula vai à reunião e (por essa eu não esperava!), trata-se de uma cilada: um exército de centena de otomanos está esperando o voivode. Mal sabem eles que Drácula, com seu inimitável detector de roubadas, tem uma cilada ainda maior preparada (e se Mel Gibson não viu essa cena antes de dirigir Coração Valente, eu sou Spartacus).



Os soldados valáquios perseguem os turcos até a fortaleza de Giurgiu, um memorável quebra-pau se segue, com derrota dos otomanos e avanço do exército do empalador Império Otomano adentro, capturando várias fortalezas estratégicas dos turcos às margens do Danúbio.

Mais uma vez, o roteiro "reimagina" fatos históricos, para fazer Vlad III parecer a epítome da perfeição: na verdade, não houve tentativa de emboscada nenhuma. Drácula simplesmente concluiu, após colocar a casa em ordem e passar três anos sem pagar o tributo ao sultão, que uma invasão otomana em grande escala era inevitável. Astucioso, o príncipe decidiu fazer, na surdina, um ataque preventivo: aproveitando que a maior parte do exército otomano estava do outro lado do mundo, no cerco de Coríntio, o Empalador fez uma estratégica série de ataques-surpresa a fortalezas mantidas pelo inimigo dos dois lados do Rio Danúbio, minando consideravelmente a vantagem que o sultão teria em uma tentativa de invasão da Valáquia.

No meio da diversão, o Empalador é informado que, do outro lado de seu reino, uma invasão comandada por Dan III e um exército de mercenários está ocorrendo (é, esse indivíduo o roteiro deixa claro que tentou tomar o trono com o auxílio de um exército de mercenários). Tendo em vista a desvantagem numérica dos soldados valáquios que resistem à invasão (já que a maior parte do exército está esculachando os turcos), Drácula manda que estes recuem e criem obstáculos para os invasores até sua chegada, em dois dias. Anuncia, ainda, que quer Dan e seus boyars capturados vivos.

Não vemos a batalha entre os homens de Vlad e Dan III, só o resultado: o segundo e seus boyars são derrotados e capturados e, num raro momento de fidelidade histórica, Drácula determina que Dan cave sua própria cova, enquanto seus ritos fúnebres são lidos por um padre. "Se ele não soube morrer como um voivode", justifica o príncipe, "que pelo menos seja sepultado como um".

Corta para o sultão, que, emputecido, convoca Radu, irmão de Vlad, e o ameaça de morte. Borrando-se de medo, a alternativa que o mancebo encontra para tirar o seu da reta é se oferecer para combater o irmão. Mais uma vez, o roteiro simplifica a situação e deixa uma porrada de perguntas sem resposta. Em primeiro lugar, quem é Radu e por que ele está entre os turcos? Radu Drácula, ou Radu, o Belo, como o rapaz era conhecido (porque... bom, acho que o apelido é auto-explicativo), era o irmão mais novo e bem-apessoado de Vlad III, que ficou em cativeiro otomano com este. É inegável que a história demonstra uma certa fraqueza de caráter do príncipe - afinal, ao contrário do irmão, ele se deixou aculturar no cativeiro. Por outro lado, Radu tinha oito anos de idade quando se tornou refém dos turcos, o que torna mais fácil assimilar sua conversão. Mas, enfim, Radu acabou se tornando um dos assessores mais próximos de Mehmed II (acredita-se que essa confiança decorria do fato de os dois serem mais do que simples amigos, se é que vocês me entendem, e acredito que entendem) e pretendente ao trono da Valáquia (em parte porque It's Good to be the King, e, em parte, porque ele e Vlad se detestavam desde crianças) e, como sua conversão ao Islã tornava praticamente impensável qualquer apoio europeu à sua pretensão, se apresentou ao sultão como um voivode valáquio bem mais viável que seu irmão inflexível. Foi assim que, quando Drácula finalmente emputeceu o Mehmed, Radu participou, ao lado deste, da invasão da Valáquia. Não porque o sultão deu um faniquito, ameaçou matá-lo e o jovem, desesperado, apelou pra qualquer negócio.

Os turcos cruzam o Danúbio e Drácula parte para lhes dar boas-vindas. Emputecido, o voivode toma conhecimento de o exército não compareceu todo porque parte dos boyars (sempre eles) amarelou e não quis marcar presença. O proletariado, contudo... digo, os camponeses, inclusive idosos e crianças, compareceram em massa (outra lorota). O rei da Hungria, Matthias Corvinus (filho de João Hunyadi, embora o filme não faça menção a isso) também está se dirigindo para ajudar a Valáquia, mas, observa o príncipe, ainda se encontra na metade do caminho e provavelmente não chegará a tempo de influir decisivamente no combate. Mais uma vez, Drácula constata que terá que se virar sozinho para defender sua pátria da agressão imperialista estrangeira, como Cuba faria cinco séculos mais tarde... HAHAHAHAHA, mais uma piada de comunista. Eu me mato de rir. Estou sacaneando, claro: se Fidel não tivesse corrido pra barra da saia da mãe, a URSS, sua "revolução socialista" não teria durado três anos.

A maneira como a resistência à invasão otomana é retratada no filme é um dos poucos momentos de fidelidade histórica do roteiro e mostra o brilhantismo de Drácula como estrategista militar. Percebendo que a inferioridade numérica de seu exército tornaria suicida uma guerra travada nos moldes tradicionais, o voivode bateu estrategicamente em retirada e, conhecendo a geografia de seu país muito melhor que o invasor, utilizou, para enfraquecer a máquina de guerra turca, táticas de guerrilha e o equivalente medieval de guerra biológica: ordenou que seus homens queimassem todas as aldeias e plantações, matassem todo o gado e envenenassem todos os poços d'água, deixando o exército invasor privado de água e alimentos. Qualquer destacamento de soldados que se afastasse do exército (como ocorre, no filme, com um pelotão que Mehmed envia para buscar água no Danúbio) era emboscado pelos valáquios, caravanas de suprimentos eram aniquiladas e os acampamentos do exército otomano eram assolados por constantes ataques-surpresa noturnos. Só lamento que tenham deixado a tática mais sacana de fora: colocar portadores de doenças contagiosas para se infiltrar entre os turcos, espalhando moléstias entre os soldados inimigos. Mas tudo bem. Contribuindo ainda mais para derrubar o moral dos invasores, Mehmed e seu exército se deparam, no meio da marcha, com a legendária "floresta dos empalados", a mais famosa obra de Vlad Tepes, erigida com os corpos de Thomas Catavolinos e seus homens, agora em avançado estado de decomposição.

Lamentavelmente, o orçamento dedicado aos efeitos especiais da produção parece ter sido o equivalente a uma semana de ração... digo, alimentação... de um cidadão da Romênia de Nicolae Ceausescu. O momento em que o exército turco se depara com a floresta dos empalados é excelente - a marcha se interrompe abrutamente, a câmera dá um zoom no rosto de Mehmed e, em seguida, corta para o motivo de seu estarrecimento: uma quantidade considerável de abutres sobrevoando a área e, descendo, revela, abaixo destes, as centenas de corpos empalados (reza a lenda que a "floresta" era composta por vinte mil cadáveres, mas provavelmente se trata de exagero). Quando o exército passa por entre os corpos, entretanto, fica patente que os "cadáveres" são aqueles esqueletos de plástico vagabundos, encontrados em qualquer festa de Halloween. Para ser justo, a iluminação até tenta disfarçar, mas a tosqueira é óbvia.


Aproveitando o declínio do entusiasmo dos turcos, o Empalador decide dar o golpe de misericórdia que encerrará de vez a invasão: seus homens capturam uma caravana que trazia água do Danúbio, mata os soldados e rouba os uniformes. Disfarçados, os soldados, liderados por Drácula (que, lembre-se, passou quatro anos vivendo entre os turcos e fala o idioma fluentemente), se infiltram no acampamento do sultão. Quando cai a noite, o voivode invade a tenda de Mehmed, desce a punhalada no ocupante da cama, e incendeia a tenda, sem saber que seu alvo, na verdade, havia saído para fazer sabe-se lá o que e o mané adormecido era só um zeba qualquer (provavelmente um amante do sultão, que, apesar da fé islâmica, era chegado também num oba-oba com ambos os sexos). Entrando no clima de "já matou", Drácula, ainda disfarçado, sai pelo acampamento anunciando que os infiéis se disfarçaram e mataram o sultão, provocando uma tremenda desordem, que o exército valáquio aproveita para desferir mais um ataque surpresa, numa cena de batalha extremamente bem-dirigida, a despeito da fotografia escura. O resultado é uma tremenda sova sofrida pelos muçulmanos, seguida por uma estratégica batida em retirada dos valáquios. Embora o filme não mostre e nenhuma fonte histórica respalde minha tese, acredito que os romenos saíram com uma mão segurando as rédeas dos cavalos e a outra voltada para trás, punho cerrado exceto pelo dedo médio erguido.

Amanhece o dia e Drácula está feliz da vida, seguro de ter dado cabo do sultão. Segue-se uma ridícula cena em que o voivode, alegre, lampeiro e, pela primeira vez no filme, exibindo um sorriso que não esconde a segunda intenção de matar algum mané, observa seus soldados dançarem e cantarem (parece que os diretores achavam que o Empalador era adepto da mesma escola de RP que Boris Ieltsin).

Enquanto isso, tudo é tristeza entre o exército invasor: com o moral dos homens em baixa e sua superioridade numérica severamente reduzida, Mehmed resolve dar para trás e voltar para a terrinha. Persistente, contudo, o sultão ainda não se dá por vencido e o roteiro se sai com mais uma picaretagem: é revelado que um destacamento de soldados turcos, liderado por Radu, sequestraram as famílias dos boyars que apoiaram Vlad III.

No acampamento de Drácula, este leva um chute nos bagos seguido, rapidamente, por outro ainda mais severo: é informado por um de seus homens que Mehmed ainda está vivo e, pouco depois, seus boyars são confrontados por Radu e colocados diante do seguinte dilema: ou traem Drácula e passam para o lado do inimigo, condenando o príncipe ao exílio, ou suas mulheres e filhos viram comida de minhoca. Altruísta, o príncipe não suporta ver seus homens sofrerem o peso de tamanha decisão e os ordena que o abandonem, aduzindo que vai fugir e buscar apoio junto ao rei húngaro, e, assim, retornar e recuperar o trono. É tudo muito comovente e mais mentiroso do que os comerciais do Walter Mercado.

Na verdade, o que ocorreu foi o seguinte: Drácula, de fato, acabou botando os turcos para correr, mais ou menos da maneira como o filme mostra. Mehmed II, entretanto, não entregou completamente os pontos. Ele deixou Radu na Valáquia com um contingente de soldados para tentar conseguir o que não foi possível através das armas mediante diplomacia. A tática funcionou: por mais que Drácula tenha contribuído para a prosperidade da Valáquia e protegido seu principado de invasores estrangeiros, a verdade é que ninguém se sentia 100% seguro ao lado do príncipe. Entre ficar com um príncipe que podia, a qualquer momento, num surto de paranóia ou simplesmente um acesso de mau-humor, empalar o infeliz que estivesse por perto e a lábia de Radu - que prometia manter a autonomia da Valáquia em relação ao Império Otomano e uma liderança mais "flexível" - os aristocratas acabaram sendo convencidos a optar pela segunda alternativa. Pois é, eram um bando de cretinos covardes. Como já dizia a Madre Teresa, eu odeio gente. Drácula, diante de tal sacanagem, fugiu para a Hungria, buscando o apoio de seu, então, aliado, o rei Matthias Corvinus.

De volta ao filme: mal sabe o príncipe que forças ocultas conspiram contra seu plano. Com "forças ocultas", claro, quero dizer "a burguesia detentora dos meios de produção e opressora das massas": os comerciantes de Brasov recebem uma carta de Radu solicitando seu apoio para impedir que o rei húngaro se alie ao Empalador. Inescrupulosos, os filhos da puta forjam uma carta de Drácula para o Sultão, na qual aquele se rende às forças otomanas e oferece sua vassalagem e colaboração na invasão da Transilvânia e da Hungria. Em seguida, dão um jeito de a carta cair na mão de Corvinus. Drácula chega à Hungria achando que vai ser recebido de braços abertos e acaba sendo recebido com um baculejo e aprisionado como traidor.

O filme se encerra assim, com legendas nos informando que Drácula passou doze anos como prisioneiro do rei húngaro, voltando ao poder novamente em 1476, com o apoio de Corvinus e de seu primo, Stefan, príncipe da Moldávia. Seu reinado, contudo, só duraria dois meses, encerrando-se com seu assassinato. Fim.

Essa conclusão é... mas ou menos verdadeira. De fato, Drácula foi buscar refúgio na Hungria, esperando que o rei lhe desse o apoio militar necessário para retomar seu principado. De fato, o voivode acabou sendo preso por Matthias Corvinus, em razão de correspondências que - tudo indica - foram forjadas por seus inimigos políticos, para sabotar qualquer possibilidade de retorno do Empalador ao trono da Valáquia. Com "tudo indica", entretanto, quero dizer que era óbvio para praticamente todo mundo que a correspondência era forjada. Os termos com que ele suplicava o perdão de Mehmed II nas cartas eram exageradamente submissos, exagerados e distintos do tom utilizado pelo príncipe em suas correspondências; comparados com a atitude radical e inflexível de Drácula, tornavam-se risíveis. Eram o equivalente medieval aos "fundamentos" de teorias conspiratórias retardadas que circulam por aí hoje em dia (como a história de que foi o governo Bush quem arquitetou o ataque ao World Trade Center ou aquela série idiota de livros e filmes "Deixados Para Trás", que sustenta que o Anticristo vai ser [pffffff] o Secretário-Geral da ONU). E, também ao que tudo indica, "todo mundo" incluía o rei húngaro. À época, Matthias Corvinus estava tendo conflitos internos para consolidar seu poder e não estava muito interessado em travar uma guerra em dois fronts. A idéia de deixar Radu Drácula no comando da Valáquia (que permaneceria independente e, ao mesmo tempo, em razão das boas relações entre o novo voivode e o sultão, impediria uma invasão turca), parecia, a curto prazo, mais conveniente. Foi, em síntese, por isso que, apesar de todo mundo achar as "correspondências traiçoeiras" uma fraude gritante, Corvinus preferiu dar-lhes credibilidade e sacanear com seu aliado. É óbvio que nem a pau um filme maniqueísta e obviamente destinado a ser utilizado como propaganda nacionalista/comunista insinuaria tal coisa contra os companheiros socialistas da Hungria, de modo que Vlad Tepes prefere retratar Matthias Corvinus como um inocente manipulado pela burguesia mercenária. Enfim, doze anos mais tarde, com o poder consolidado, o rei húngaro ficou de saco cheio com o voivode valáquio, Basarab Laiota (sucessor de Radu, que morreu de sífilis), que estava sendo amistoso demais com os otomanos para seu gosto. Drácula, nesse ínterim, havia feito o possível para conquistar a confiança de Corvinus, tendo, inclusive, se convertido ao catolicismo romano e se casando com uma aristocrata húngara - provavelmente uma prima ou sobrinha do rei. Assim, Tepes finalmente conseguiu apoio militar húngaro e moldávio para retomar seu trono. Como o filme aduz, contudo, ele só durou dois meses no trono, sendo assassinado em circunstâncias obscuras, que abordarei depois.

Quem costuma ler os message boards da IMDB sabe que, sempre que fazem um filme americano sobre personagens ou eventos históricos de outro país (como o Alexandre de Oliver Stone), há sempre um bando de idiotas desocupados que, imbuídos de orgulho patriótico, tratam de expressar sua insatisfação, geralmente através de textos escritos com a irretocável verve de um semi-analfabeto com paralisia cerebral, com o que julgam ser a "distorção de nossa história pelos ianques ignorantes". O caso mais hilariante que me vem à mente foi a histérica revolta dos iranianos com 300, que, alegavam os "descendentes dos persas", era "uma declaração de guerra" ao seu país e ao Islã. Porque, como qualquer pessoa sensata pode perceber ao ver o filme, a intenção de Frank Miller e Zack Snyder era retratar a batalha de Termópilas priorizando o realismo e a fidelidade histórica. E o Irã contemporâneo e o islamismo têm tudo a ver com o Império Persa. Vlad Tepes é o filme que todos esses manés com excesso de sensibilidade deveriam assistir. Parece que a obra foi a maneira que a Romênia encontrou para dizer: "Viu? Nós conseguimos distorcer nossa história e inventar lorotas com a mesma criatividade que qualquer ianque ignorante!" Aposto que, se John Wayne estivesse vivo e disposto a trabalhar por um prato diário de papa, eles teriam colocado The Duke para interpretar Drácula. O filme consegue ser mais fantasioso que o americano Dark Prince e, ao contrário deste, tem um roteiro praticamente ininteligível para quem não vai ao filme sem saber alguma coisa sobre Vlad Tepes e o contexto histórico em que este viveu. E quem sabe vai apenas se irritar com as "licenças dramáticas".

Como já falei, boa tarde da infâmia atribuída a Vlad Tepes se deve, em parte, à propaganda disseminada por seus inimigos desde sua própria época. O filme, entretanto, sustenta que TODA má fama da figura decorre de propaganda inimiga, o que já é demais para engolir, e acaba sendo o primo romeno de O Patriota. Como o "épico sobre a Revolução Americana" de Roland Emmerich, Vlad Tepes pega um personagem histórico de inegável importância a seu país (Francis Marion, no caso de O Patriota), mas de métodos brutais e valores moralmente questionáveis, e o eleva a uma condição de retidão moral tão extrema que se torna implausível e, francamente, risível para quem já estudou a figura (O Patriota, pelo menos, teve o senso de ridículo de mudar logo o nome do personagem e torná-lo uma figura fictícia "inspirada em fatos reais"). O Drácula do filme é um personagem que sempre toma as decisões corretas, nunca comete uma injustiça, nunca peca pelo excesso e só usa da violência e da intimidação quando estes recursos se tornam a única alternativa possível. É praticamente um Billy Jack romeno. Não há qualquer ambiguidade moral, qualquer momento em que a superioridade ética do homem seja colocada em dúvida. E é até bom, porque, caso houvesse, seria impossível para o espectador chegar a qualquer conclusão, por falta de fundamento: sua infância, sua adolescência em cativeiro turco, a deposição e assassinato de seu pai, enfim, tudo que poderia contribuir para entender como sua personalidade se formou são deixados de lado. Pensando bem, eu fui injusto: o personagem de Mel Gibson em "O Patriota" podia não ser um enigma, mas pelo menos o filme deixa brecha para que o público questione algumas de suas ações. E até aquela história manjada de "homem com um passado sinistro que encontrou a paz interior nas coisas simples da vida" é mais instigante que o maniqueísmo que vemos aqui.

O mais triste é que, assim como Dark Prince, Vlad Tepes não é um filme tosco. Percebe-se que havia potencial para fazer algo de respeito. A reconstituição de época é bastante autêntica e o fato de as filmagens terem sido feitas na região onde a história se passou também não atrapalha. A edição faz o filme fluir com um bom ritmo (com exceção de algumas transições toscas que, creio eu, decorreram de censura) e as cenas de batalhas são bem dirigidas, realistas e, por vezes, empolgantes - coisa surpreendente para um filme feito na Romênia comunista de 1979. Stefan Sileanu está excelente como o protagonista - a interpretação do ator corresponde, pelo menos superficialmente, à imagem que eu tinha do Drácula histórico (ao contrário do Empalador de Rudolf Martin, que parece fantasia de alguma adolescente gótica) e é lamentável que roteiro não confira um mínimo de complexidade ao personagem. E aquele bigodão gigantesco é totalmente badass. O resto do elenco não chama a atenção. O problema, contudo, não é com os atores (que fazem o trabalho com profissionalismo), mas com os personagens, que são estereótipos (como se pode inferir do texto, não lembro do nome de nenhum dos companheiros de Drácula e só lembro de figuras como Radu e Catavolinos porque já tinha lido sobre eles): temos "os aristocratas covardes e traiçoeiros", "os burgueses gananciosos", "o braço-direito leal", os "camponeses puros e honestos" e assim por diante. Personagens relevantes à história, como Matthias Corvinus e seu pai, Janos Hunyadi, são ignorados ou entram em cena perfunctoriamente, sem deixar qualquer impressão. Mehmed II, que poderia ser um vilão brilhante, não tem qualquer traço de personalidade marcante: a única coisa que se sabe é que ele quer dominar o mundo e manda matar os subalternos que não atendem às suas expectativas. Tudo bem, ele era assim mesmo, mas também era um muçulmano bissexual, um mecenas, um entusiasta da cultura renascentista e um megalomaníaco que queria entrar para a História ao lado de figuras como Alexandre, Júlio César e Aníbal. Dava para transformar o personagem em algo mais que "vilão barbudo de turbante". E, apesar da excelente interpretação de Sileanu, o roteiro não trata Drácula de forma muito diferente: ele é simplesmente um sujeito fodão de bigode. A única diferença é que ele é "do bem" e "está preocupado com o bem-comum", enquanto seus inimigos "só pensam em acumular bens materiais". Por mais entusiasmo que eu eu tenha por heróis fodões e bigodudos (uma raça em trágica extinção, mas que um dia renascerá; então, ao invés de Keanu Reeves e Tom Cruise, teremos novamente heróis de ação como Franco Nero, Maurizio Merli, Burt Reynolds e Tom Selleck), é um desperdício. Sei que estou batendo na mesma tecla e que minhas críticas não fazem sentido, pois a intenção dos produtores nunca foi fazer um épico histórico, mas usar um personagem histórico para fazer propaganda política. Mesmo assim... porra... Será que não dava para fazer um filme decente e apresentar a abobrinha ideológica de forma um pouco mais sutil? Como em, digamos, A Profecia (que, segundo certas teorias, bastante interessantes, é propaganda anti-católica). Mesmo com todos os defeitos de Dark Prince, sou obrigado a concluir que os ianques ignorantes acabaram fazendo um filme mais fiel à vida de Vlad, o Empalador, do que seus conterrâneos.

E... porra, dava para acabar o filme de forma menos broxante do que um letreiro explicando o que aconteceu com o protagonista? Principalmente porque a morte de Drácula é o tipo de negócio mal contado que qualquer escritor com um mínimo de imaginação poderia explorar (como já fizeram em livros como Children of the Night, de Dan Simmons, e Lord of the Vampires, de Jeanne Kalogridis). Há pelo menos duas versões: segundo a primeira, Drácula teria se disfarçado de turco durante um combate e sido, por um mal-entendido, morto por um de seus homens. A outra versão, mais aceita, é a de que os turcos infiltraram um assassino entre a guarda do príncipe, o qual o assassinou. Qualquer que seja a versão, o fato é que a cabeça de Drácula foi levada a Constatinopla, para exposição pública em uma estaca, e o corpo decapitado, enterrado no monastério de Snagov. Ambas as versões fedem a lorota, pois 1) Vlad Tepes não era um débil mental e 2) o detector de emboscadas do homem era tremendo. Considerando-se que o século XV não era, precisamente, a era da informação (dificilmente alguém ia comparar minuciosamente a cabeça decepada com o Orkut de Vlad) e que não era muito difícil arranjar uma cabeça romena bigoduda e nariguda (que provavelmente estaria apodrecendo ao chegar em Constantinopla), as possibilidades de teorias conspiratórias mirabolantes são imensas. E o filme reduz tudo isso a um letreiro de 30 segundos.

Seria, então, uma perda de tempo ver o filme? Não. Embora o filme não seja propriamente tosco, a propaganda política descarada é hilária. Eu diria que, como o Superman IV, é um filme ideologicamente trash, feito por gente que achava que o público era totalmente idiota e não perceberia as "mensagens" óbvias. E gente que defende o comunismo/marxismo/blábláblá com um misto de convicção inabalável e argumentos de adolescente emputecido porque ficou de castigo é sempre fonte de humor involuntário da melhor qualidade.

Finalmente, um disclaimer: antes que algum débil mental... digo, marxista orgulhoso me envie uma mensagem mal redigida, acusando-me de ser um fascista reacionário ou um burguesinho alienado, adianto que minha orientação política coincide com o que a maioria das pessoas costuma associar à esquerda. A título de exemplo (e tenho certeza que alguns de meus colegas blogueiros vão me sacanear incansavelmente depois de ler isso), votei no Lula duas vezes (e provavelmente votarei no candidato que ele apoiar), acho que o bolsa-família é um programa bem estruturado que só não funciona como devia por causa das administrações municipais, sou defensor da legalização do casamento gay, da regulamentação jurídica da prostituição como profissão legítima, da descriminalização do comércio de entorpecentes, da Lei Maria da Penha e, se fosse americano, provavelmente estaria entre aqueles manés que festejaram a vitória de Barack Obama como se fosse a segunda vinda de Cristo. Não concordo, contudo, com o sociologismo generalizado da esquerda sobre política criminal (em outras palavras: acho que investir no social pode gerar redução de criminalidade daqui a trinta anos, mas com o que já está podre, acredito que a prática mais sadia é excluir do convívio social e, se possível, do plano material) e odeio a abominação fascista que se convencionou chamar de "politicamente correto". Há, contudo, uma nítida diferença entre ser "progressista" e ser tapado. Eu sei que aquelas baboseiras de Karl Marx fazem sentido quando analisadas dentro do contexto histórico em que foram redigidas, que ainda se pode destilar algo de útil daquele amontoado de baboseiras (nada, porém, que o bom senso não ensine de forma bem menos trabalhosa) e blábláblá, mas que se foda. Usar hipérbole é mais divertido. Aquilo é uma bosta. É o equivalente ideológico a defender que a Terra é quadrada. E se Vlad Tepes estivesse vivo hoje, certamente concordaria comigo. Com a diferença que, ao invés de escrever um blog divagando interminavelmente sobre filmes, ele empalava gente. Reflitam sobre isso, amigos.

8 comentários:

  1. Caraca, isso aqui valeu bem mais que as minhas aulas de história com a Dona Dilma na quarta série... E sou totalmente a favor de suas opiniões quanto ao Marx e suas idéias socialistas. Não que eu seja uma coisa que se diga "nossa, como sou capitalista" e etc, mas como dizia o Super Sam, nos episódios do Chapolin: "Time is Money".

    Quanto ao filme, nunca ouvi falar, mas darei uma conferida quando surgir a oportunidade.

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  2. Hehehehe... Perrone, é como diz o Monty Python - always look at the bright side of life. Pode-se dizer muita coisa negativa sobre a Romênia (como, por exemplo, que se trata do sovaco do mundo), mas uma virtude o país tem: enquanto, nas aulas de História, estudamos xaropices sobre a D. João VI e sua incrível família (bando de covardes que fugiram da Europa assim que Napoleão ameaçou dar um cascudo em Portugal), os D. Pedros (dois frouxos), política do café-com-leite, um golpe de estado inepto atrás do outro e aquela risível "manifestação popular" do "Diretas Já!" (tão relevante que resultou em mais uma eleição indireta), os romenos estudam guerreiros medievais bigodudos, totalmente badass, que soltam piadinhas de humor negro enquanto empalam gente e ditadores comunistas fuzilados, em ritmo de carnaval, no meio da rua.

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  3. kurt, me passa seu email...
    o meu ronaldperrone@gmail.com

    Quero falar contigo.
    Abraço!

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  4. fala cara

    li seu artigo, gostei muuuito mesmo da descrição do filme(minha internet é lenta, então sem chance de assistir) e dos seus comentários também, principalmente a dele ter um bigodão badass XD

    Comecei a pesquisar sobre o Vlad III a pouco tempo, não sei se seria do seu interesse, mas descobri ele a partir de um anime chamado hellsing, pelo que parece o autor pesquisou um pouco sobre ele, acho que talvez você goste do anime, pois tem muitos pontos em comum e coisas interessantes sobre o q seria o Vlad na suposta atualidade
    Recomendo que procure pelo mangá* online, como compro não conheço nenhum link
    Fica a dica ;D

    E parabéns pelo seu trabalho nesse texto!!!

    *existe um anime, mas a história leva do nada a lugar nenhum, o mangá tem a história muito mais elaborada, fala sobre muita coisa interessante, e tem as animações chamadas OVA, que ainda estão sendo lançadas.

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  5. Esse vlad era o terror, to espera dum filme fera dele também, por hora só a literatura mesmo.

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  6. Será possível? Eu nunca li algo tão genial e principalmente sincero sobre esse assunto, são poucos os que defendem o Empalador.Assisti o filme Dark Prince, realmente não me imprecionou muito, as batalhas nem um pouco épicas e mau contadas foram um ponto, outro foi a personalidade mórbida que o ator incarnou como Vlad, uma visão muito romântica como você mesmo disse, e a apelação vampiresca.Resumindo, light. Também Vlad Tepes esses dias, e tenho que concordar com você, o filme tem seus defeitos, cortes toscos, pouca informação para se situar no contexto, mas ambos concordamos, bigode badass. Há algum tempo tento, da melhor maneira possível, me informar sobre esse assunto, muitas fontes são realmente lastimáveis, muita gente falando ambrosia que leu em não sei que outro lugar, fora os chiliquentos fazendo o terror. Mas você abordou o assunto perfeitamente, e para minha surpresa de maneira "positiva", não só pela quantidade de informações mas também pelas divagações pessoais que acredite me fizeram rir e que foram muito interessantes. Faz muito tempo que procuro algo tão elaborado sobre meu ídolo. Não, eu não sou fã de suas torturas ou tenho sonhos molhados de adolescente, ou coisa do gênero. Mas sim pelos mesmos fatos que você expôs tão claramente, sua personalidade, suas motivações, um homem de certa maneira a frente de seu tempo, realmente uma personalidade complexa e que merece uma atenção especial... E o bigode. Existe um livro, um tanto fantasioso, pois pega as lendas e as trama em um romance com direito a intrigas, amor cortês e tragédias(a propósito muito bem tramadas) chamado "Vlad - A Última Confissão", mesmo com muita ambrosia, e as vezes o personagem me parecer um pouco diferente(jovial demais)do Vlad do filme de 79', é um livro que eu particularmente gosto de ler, a história te envolve, e mesmo que o autor peque no sentido de não explorar perfeitamente o personagem, levando a história com um personagem principal plano, a mérito de diversão é um ótimo livro, tanto pelas descrições que eu poderia "enquadrar" no naturalismo, quando pela maneira interessante que a história se desenrola.

    Enfim...kkk Obrigada pelo post, valeu meu dia. #Peaceoff

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    1. Obrigado pelo feedback, Claudine. Eu realmente não entendo como figuras históricas de relevância duvidosa (e.g., JFK, que comprou a presidência, levou um monte de mulher pra cama, mas foi assassinado sem concretizar praticamente nada em matéria de intregação racial) são objeto de uma infinidade de filmes e uma indivíduo com uma história tão complexa, instigante e repleta de traições, intrigas políticas e batalhas épicas, fica relegado a filmes de qualidade duvidosa. Recentemente li "Vlad Dracula: The Dragon Prince" de Michael Augustyn e fiquei decepcionado: ele retrata o Empalador de forma muito insípida e romantizada. Recomendo "In Search of Dracula" e "Dracula - Prince of Many Faces: His Life and Times", ambos de Raymond McNelly e Radu Florescu. São obras fantásticas, que, antes de falar sobre o personagem título, fazem um belo trabalho no sentido de esmiuçar o contexto histórico em que ele viveu. Vou procurar "A Ültima Confissão".

      Abraço,

      Kurt Breichen

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