quinta-feira, 21 de maio de 2009

Blackenstein: The Black Frankenstein

Ed Wood, Al Adamson, Phil Tucker, Sam Katzman, Bruno Mattei, Albert Pyun, William "One-Shot" Beaudine... Todos fazem parte de um seleto grupo de cineastas cujas obras são caracterizadas por uma completa ausência de valor artístico, contraposta a um inestimável valor humorístico que jamais (há de se presumir) foi a intenção dos artistas. Há um nome pouco conhecido, contudo, que, por um memorável instante, integrou essa augusta elite. Seu momento neste Olimpo foi breve e sua queda foi tão célere quanto sua ascenção - logo após dirigir a obra que o elevou ao topo das montanhas do cinema teratológico, tal homem descambou para o sombrio vale de uma carreira de filmes softcore e melodramas medíocres dos quais ninguém ouviu falar. Mas, parafraseando Chuck Palahniuk, um instante é o máximo que se pode esperar da perfeição e um instante de perfeição vale todas as penas que custou. Por um efêmero e cintilante instante, o indivíduo de quem falo atingiu essa perfeição, contruindo uma obra consistente em autêntico vácuo de virtudes e, paradoxalmente, magnífica, tal como os titãs da ruindade supracitados. O homem é William A. Levey e sua obra é Blackenstein (subtítulo, para esclarecer a idéia aos menos sagazes: The Black Frankenstein).

O título, em si, já é indício das qualidades da obra. Um cinéfilo incauto, ao lê-lo, poderá pensar: "Evidentemente, trata-se de uma versão blaxploitation de Frankenstein." Neste aspecto ele estará correto. O hipotético cinéfilo poderá pensar, ainda: "A trama deve ser sobre um cientista negro que, em suas experiências bem-intencionadas, acaba criando um monstro." ("Negro não" poderá tal cinéfilo dizer, corrigindo-me, se ele for politicamente correto, "cientista afrodescendente". Ao que eu replicarei: "Eu não sou politicamente correto e o blog é meu, então foda-se. Você é fruto de minha imaginação e vai pensar o que eu quiser, da maneira que eu quiser. Isto não é um debate. Eu sou Deus e você é Jó, então tome uma centena de doenças horríveis, para aprender a controlar sua insolência!") Neste aspecto, o (agora moribundo) cinéfilo estará errado: provando que não leu o livro, nem viu nenhum dos filmes e que a única referência que tinha de Frankenstein era a icônica imagem de Boris Karloff nos filmes da Universal, o roteirista Frank R. Saletri escreveu (na acepção amplíssima do termo) um filme sobre um cientista branco que cria, acidentalmente, um monstro negro. Inobstante, o cinéfilo poderá pensar: "É uma premissa intrigante. Talvez o filme seja bom." Neste aspecto, o indivíduo imaginário estará profunda e verdadeiramente equivocado. Blackenstein não é um filme bom. É ruim. Muito ruim. Ruim como ser masturbado por Edward Mãos-de-Tesoura. Examinemos os fundamentos de tal constatação.

Começamos com uma sequência de créditos pra lá de original: uma mansão em noite de tempestade e, no interior desta, um indivíduo trabalhando num recinto repleto de máquinas cuja utilidade desconhecemos, mas que emitem ruídos dos mais diversos e soltam raios, o que só pode significar que se trata de um cientista.

Os créditos indicam, ainda, que a aparelhagem é de Kenneth Strickfadden - o mesmo responsável pela do Frankenstein de James Whale. Estou me repetindo, mas tenho que indagar: Strickfadden ficou viciado em heroína no crepúsculo de sua vida? Perdeu tudo em jogatina e foi morar debaixo da ponte? Primeiro "Drácula vs. Frankenstein" e, agora, isso? Caramba...

Depois de 2 minutos e 36 sólidos segundos do cientista mexendo em seus brinquedos (sim, eu contei), totalmente imprescindíveis à trama, a sequência de créditos continua com um avião pousando (em tempo real) em Hollywood e os passageiros descendo, ao som de uma melosa música soul. Acompanhamos uma das passageiras, uma atraente jovem negra, enquanto esta aluga um carro, espera colocarem a bagagem na mala deste, entra no carro, espera fecharem a porta, dirige por uma estrada até chegar à mansão da abertura, estaciona o carro em frente à mansão, desce, toca a campainha e é recepcionada pelo mordomo Malcomb (mais uma vez, tudo é mostrado em tempo real, o que é essencial à trama e, de modo algum, pretexto para encher linguiça e aumentar a duração do filme).

O mordomo Malcomb, vale referir, é uma figura ímpar: um negro enorme, com uma voz de deixar James Earl Jones orgulhoso, que destoa de sua expressão de... ehhh... pessoa excepcional. A jovem, descobrimos, se chama Wininfred Walker e quer falar com um certo Dr. Stein (criativo). Suspense é ensejado: será que o Dr. Stein é aquele cientista da abertura? É, sim. Obviamente.

Enquanto Malcomb vai chamar o cientista, Winnifred fica sentada numa poltrona ao lado de uma imensa estátua da Virgem Maria e de uma escada em espiral; no teto, pende um grande candelabro, no meio do poço da escadaria e logo acima da mocinha. Enquanto tais detalhes são observados por Winnie, uma estrondosa música genérica de filme de terror explode, inexplicavelmente, na trilha sonora. Isso demanda um trabalho de interpretação da cena. Será que se trata de simbolismo cristão? Talvez. Podemos interpretar o candelabro, que pode cair a qualquer momento, como a morte, e a imagem de Maria e a escadaria (que simbolizaria Cristo) como a redenção e a ascenção ao Paraíso. Ou simbolismo ateu: a imagem e a escadaria podem significar a falsa idéia de vida após a morte que trazem conforto ao ser humano e o deixam incauto, à mercê da morte (representada pelo candelabro), que está sempre espreitando. Uma terceira interpretação seria a de que a cena tem toques autobiográficos: talvez a mãe de William Levey tenha morrido esmagada por um lustre, mas o diretor, um católico devoto, espera que seu espírito permaneça vivo, tendo ascendido ao paraíso através da fé em Jesus Cristo (mais uma vez, a escadaria) e da intercessão da Virgem Maria. Ou talvez a cena não signifique porcaria nenhuma, a música estrambólica tenha sido usada só para criar tensão infundada e encher linguiça e eu esteja escrevendo um monte de bobagens. Você decide.



Dr. Stein é avisado pelo mordomo através de um gigantesco alto-falante e a mocinha é levada ao laboratório para encontrá-lo. Tomamos conhecimento de que Winnie foi aluna do cientista e acabou de tirar seu Ph.D em Física (ela não é meio nova para isso? Tudo bem, é mais plausível que a "Dra." Christmas Jones). Descobrimos, também, o motivo da visita da jovem ao seu antigo mentor: seu noivo foi ao Vietnã, pisou numa mina e ficou seriamente desaconchegado. Winnie quer que Stein a auxilie a fazer o possível para ajudar seu amado.

Após mais uma tomada da mansão numa noite de tempestade e relâmpagos (embora Winnifred tenha chegado em plena luz do dia), passamos a uma cena de jantar entre Winnie e o cientista, ao som de ópera, onde descobrimos que Dr. Stein ganhou o prêmio Nobel, e Winnie reitera seu pedido de ajuda ao cientista. Indagada sobre a natureza dos ferimentos do rapaz, a moça apenas diz que "prefere não dizer agora", mas que seu noivo chegará "amanhã". Mais uma cena inteiramente necessária ao desenrolar da trama, que se encerra com o médico pedindo licença para "continuar com seu trabalho" e Winnifred, sozinha, caminhando até uma das janelas e possibilitando que notemos que é dia. Cadê a tempestade? A trama é permeada de enigmas.

Ôpa! Mais uma cena de Winnie dirigindo, até chegar ao Hospital de Veteranos. Off-screen, ouvimos um diálogo em que ela explica a Stein o que, exatamente, ocorreu a seu noivo, Eddie: o rapaz, provando ter mais azar do que Catrionna McColl num filme de Lucio Fulci, teve os dois braços e as duas pernas arrancados pela explosão da mina. Nas palavras de James Coburn, "Man, that´s just mean. That´s mean, man!"

Winnie e o doutor entram no hospital, vão à recepção, perguntam pelo quarto de Eddie Turner a uma atendente, que pergunta a outra, que diz em que ala e quarto o rapaz se encontra. Mais uma vez, concisão no roteiro e dinamismo na edição .

Finalmente encontramos o infeliz Eddie, que está, educadamente, pedindo a um enfermeiro obeso e grosseirão por um pouco de sorvete. Na verdade, "educadamente" é um eufemismo: o rapaz está praticamente implorando. O enfermeiro filho-da-puta, ao invés de atender o pedido, fica fazendo piadinhas escrotas com a situação do rapaz, esculachando com o exército e fazendo pouco dos militares - porque tentou seguir carreira no exército e não conseguiu provar aptidão física (talvez por ser um gordo escroto?). Hmmm... Será que alguma coisa ruim vai acontecer com esse enfermeiro, fazendo-o pagar por esse momento de crueldade? A única maneira de desvendar esse enigma intrigante é continuar lendo ou ver o filme. Eu sugiro que você continue lendo. Antes de prosseguirmos, porém, devo observar que, durante toda a cena, Eddie aparece coberto do pescoço para baixo com um cobertor, o que nos impede de ver o estrago provocado pela explosão. Isso se deve, presumo, a William Levey ser um diretor sensível, que certamente achou que seria apelativo e de mau gosto mostrar de forma explícita a horrenda mutilação sofrida pelo rapaz. De jeito nenhum foi por falta de recursos para maquiagem e efeitos especiais.

Finalmente, Winnie e Stein chegam, interrompendo a escrotice do enfermeiro balofo. Eddie, num toque de criatividade do roteiro, repreende Winnie por ter vindo - o rapaz não queria ser visto pela amada em tal estado. O amor, entretanto, vence todas as barreiras, e ela está determinada a ajudar o mancebo a se recuperar. Stein, embora não prometa nada, explica que tem feito experiências com substituição de membros e que pode mudar o atual quadro médico do infeliz soldado. Este, contudo, permanece cético. Mas Winnie assevera que Dr. Stein é o maior fodão, tendo, inclusive, recebido o "prêmio Nobel da Paz por decifrar o código genético do DNA".

Pfffffffff....

Prêmio Nobel da Paz.
Por decifrar o código genético do DNA.
Ou, no original, para que minha tradução não deixe obscuridades: "received the Nobel Peace Prize for solving the DNA genetic code".
Parem por um momento para assimilar esta preciosidade. Degustem esta iguaria de diálogo.
HAHAHAHAHAHAHA! Puta que o pariu! Saletri realmente fez uma pesquisa minuciosa para escrever o roteiro desta maravilha. Aposto todos os meus bens que o homem não fazia a menor idéia do que significava "código genético", "DNA" e talvez nem mesmo o que é um "Prêmio Nobel da Paz".

Convencido pela segurança transmitida pelo cientista ("Não prometo nada, mas tenho obtido bons resultados. Se você for capaz de suportar horas e horas de procedimentos cirúrgicos... se Deus ajudar... se a Era de Aquarius finalmente tiver chegado... se eu jogar uma moeda e der coroa... e não chover... talvez, mas não estou garantindo nada, você tenha uma surpresa!" Parafraseei um pouco - um pouco mesmo: apenas acrescentei alguns exageros - as palavras do doutor, mas é nessa linha a confiança que ele passa) e pela genialidade inerente a um homem que ganhou o "Prêmio Nobel da Paz por decifrar o código genético do DNA" (e quem não ficaria?), Eddie acaba concordando.

Ao som da mesma música soul mela-cueca, mais uma vez nos deparamos com filmagens da fachada da mansão de Stein até que, finalmente, uma ambulância chega e, em tempo real, os enfermeiros retiram Eddie da mesma, numa maca, e o levam até a porta. Em seu laboratório, Stein é avisado por Malcomb, através dos colossais alto-falantes, que a ambulância chegou e autoriza o mordomo a permitir a entrada dos enfermeiros. Cada segundo neste filme conta. Se você piscar, poderá deixar passar um detalhe essencial e perder o fio da meada.

Numa cena comovente, marcada por brilhantes interpretações, Winnie explica a Eddie que, se o trabalho de Stein der certo, ele ficará novinho em folha e declara seu imenso amor pelo noivo. Este, por sua vez, exibe um entusiasmo contagiante com a possibilidade de voltar a ter pernas e braços. Com "brilhantes interpretações", quero dizer que Winnie está lendo suas falas de um cartão com a mesma desenvoltura de alguém nas primeiras fases da alfabetização e Eddie fala com a entonação de alguém que acabou de ver um documentário de dez horas sobre as repercussões do sono das codornas no ecossistema.

Após mostrarem que sabem manipular as emoções do espectador com maestria, LeVey e Saletri passam a mostrar seu igualmente titânico saber científico: Malcomb chega e Winnie explica a Eddie que este receberá "sua primeira injeção de DNA", que preparará seu corpo para a operação. A "aplicação de DNA", como a cena da escadaria, é acompanhada por uma inexplicável trilha sonora sinistra/bombástica (sim, a trilha sonora parte do sinistro para o bombástico sem nenhum motivo), seguida por mais imagens da fachada da mansão.

Enquanto aguarda o início do "trabalho" em seu noivo, Winnie resolve acompanhar o progresso dos demais pacientes de Stein. Podemos dizer que o trabalho do cientista é versátil: a primeira paciente é uma senhora que, através de injeções da fórmula do código genético do DNA (pfffffff), rejuvenesceu dos 90 para, aparentemente, uns quarenta e poucos anos. É necessário, contudo, que ela receba injeções da fórmula do código genético do DNA (HAHAHAHAHA!!!) a cada 12 horas, sob pena de voltar aos 90 anos e envelhecer ainda mais, rapidamente. Hmmm... Além de não ser muito encorajador, não vejo o que o experimento tem a ver com transplante de membros.

O próximo paciente é Bruno, que teve as pernas amputadas. Stein implantou novos membros com raios laser (hehehehehe), ministrando periodicamente injeções da fórmula do código genético do DNA (HAHAHAHAHA!!! Aí é foda! Eu morro!) para evitar rejeições. Tais injeções, contudo, não impediram um pequeno contratempo: uma das pernas do infeliz sofreu uma "involução" e Bruno agora tem uma perna normal e a outra, inexplicavelmente... essa é pra se lascar... listrada. Como a de uma zebra. Como diria aquele cara do "The Thing" de John Carpenter, "You´ve gotta be fuckin' kidding." Desde quando o ser humano pode "involuir" para uma zebra ou onça-pintada? Se eu não tivesse evidência fotográfica, ninguém acreditaria em mim.

Mas não se preocupem: o doutor está trabalhando em uma fórmula de RNA para reparar o que a de DNA não foi capaz de realizar. Hehe. Hehehe. Hehehehehe... HAHAHAHAHA...

Chega o momento que todos estávamos esperando: a "primeira fase" da operação de Eddie. Ele leva uma injeção para dormir, o doutor liga as máquinas cacofônicas e pirotécnicas e implanta os braços (da maneira como é mostrado, parece que ele simplesmente pegou uns braços que estavam largados por aí e colou com superbonder). E a operação se encerra, sem mais detalhes. Winnie, contudo, exclama que foi tudo "incrível". Teremos que acreditar na palavra dela, pois nada foi mostrado com clareza. De qualquer maneira, consideremos o seguinte: a operação consiste em implantes de membros, com injeções da fórmula do código genético do DNA (tudo bem, isso já não tem mais nem graça. É covardia) para evitar rejeições. O que nos conduz à seguinte indagação: qual é a função de todos aqueles aparelhos barulhentos? Só posso concluir que eles tem utilidade análoga àquela fantástica máquina que faz "PING!" na cena do parto de Monty Python's The Meaning of Life. Mas quem sou eu para questionar a sapiência de um homem que ganhou o Prêmio Nobel da Paz por decifrar o Código Genético do DNA?

Corta mais uma vez para a nebulosa fachada da mansão de Stein, à noite. LeVey realmente adorou essa fachada...

Winnie e Dr. Stein, em seus quartos, escutam uma gritaria e correm para ver o que se passa: Bruno está tendo um piripaque, rugindo como uma pantera e forçando os profissionais a colocá-lo em uma camisa de força.

Mais um corte para a fachada. Agora, mostrando a versatilidade de seu diretor de fotografia e sua própria originalidade, LeVey mostra também a lua cheia, ao som de cães uivando. Winnie vaga pelos corredores da mansão e vai ver Eddie, cuja operação, ao contrário de todas as probabilidades, parece estar sendo um sucesso.

Entre uma e outra cena da fachada da mansão, Malcomb aproveita um momento a sós com Winnifred para declarar à moça que, desde que a viu pela primeira vez, ficou perdidamente apaixonado. Evidentemente, ele leva um chega pra lá, ouvindo aquela original conversa de "gosto de você como amigo". O sujeito é um idiota. A mulher só está lá por causa do noivo e ele acha oportuno dar em cima dela? Aparentemente, o mané se conforma, mas seu coração está em pedaços.

Enlouquecido pela rejeição, Malcomb resolve que, se não pode triunfar como amante, haverá de triunfar como um vilão, e mistura... alguma coisa... com o soro que vai ser injetado em Eddie. Caramba, isso está começando a parecer uma tragédia shakespeariana. Percebemos isso porque o soro que vai ser injetado em Eddie está em uma garrafinha de plástico com o rótulo (escrito à mão, de pincel) "Eddie Turner". A organização do laboratório de Stein é, sem dúvida, impecável.

Partimos para a segunda fase da operação de Eddie: Mais faíscas! Mais barulho! Mas, desta vez, não vemos as pernas serem coladas com superbonder, o que tira um pouco da magia da cena. Eddie dá um repentino piripaque e Stein injeta alguma coisa. Stein anuncia que a "fusão" parece ter sido bem sucedido, ao que Winnie exclama "Great, Doctor!", com o gusto de sempre (isto é, com uma interpretação digna de filme pornô DTV. Começo a entender por que LeVey, posteriormente, enveredou pelo ramo do softcore). É aqui que começa a tragédia: seguindo instruções do cientista, Winnie injeta duas doses da "fórmula de DNA de Eddie" adulterada por Malcomb.

Corta para o que, suponho, sejam alguns dias depois. À mesa, Stein anuncia que "hoje" é o dia em que Eddie poderá sair caminhando sozinho, ensejando apáticas exclamações de entusiasmo de Winnie (você pode achar que "apáticas exclamações de entusiasmo" seriam um paradoxo, mas mudará de idéia após ver a interpretação da moça). Quando os dois vão ver Eddie, porém, este afirma que não se sente bem... e o horror tétrico gerado pela nefasta interferência de Malcomb começa a mostrar sua face.

Alarmado, Stein ordena que seja preparada a sala de cirurgia, pois "devemos começar a trabalhar rápido". Nenhum dos testes indica erro na operação (e não houve: apesar do título e de todos aqueles exemplos de que o trabalho de Stein não é, digamos, irretocável, o problema não decorreu de equívoco do cientista, mas de um ato premeditado do mordomo mal-amado).

Na próxima cena, Winnie vai aplicar novas injeções em Eddie (que agora, inexplicavelmente, está em uma cela, numa masmorra) e Stein constata que seu paciente está ainda menos bem-apessoado e comunicativo, decidindo que vai aumentar as injeções em 50 cc. Isso vai resolver.

Várias cenas se passam, mostrando Winnie no laboratório, a fachada da mansão, os tubos de ensaio do laboratório, Winnie indo à masmorra ministrar as injeções, tubos de ensaio e máquinas do laboratório, Winnie indo ao laboratório de novo, Winnie desligando o equipamento do laboratório, Winnie saindo do laboratório... tudo isso contribui para construir uma tensão crescente (hehehe), culminando com a empolgante sequência em que o monstro desperta pela primeira vez e sai para semear o terror:



É brincadeira. Por 3:17 sólidos minutos, vemos o "monstro" (repare que, na verdade, só vemos um vulto) grunhindo e vagando pela masmorra, pelo laboratório, pela rua, até entrar em um prédio qualquer. "Bem", o espectador incauto pode estar se perguntando, "pelo menos, agora que ele entrou no prédio, alguma coisa vai acontecer, certo?" Certo. "Alguma coisa", nesse caso, significa mais cenas do monstro vagando e grunhindo sem rumo. Pelo menos, agora, podemos ver o semblante da horrenda criatura claramente:

Pois é. O ator que interpreta Eddie, só que com um cabeção quadrado, um black power igualmente quadrado e a pele pintada de cinza. Em favor de William LeVey, pode-se afirmar que a maquiagem não é tão ruim quanto a da criatura de Dracula vs. Frankenstein e... É só isso mesmo.

Após mais alguns segundos, descobrimos que o prédio onde o monstro entrou é o Hospital de Veteranos onde Eddie esteve internado. O suspense se instaura. Será que o enfermeiro gordo escroto finalmente pagará por sua crueldade? Flashbacks dos insultos do enfermeiro se passam. Várias vezes. Caso tal possibilidade não tenha ocorrido ao espectador. Se você ficar com a impressão de que William LeVey não primava pela sutileza, lembre-se que o título completo do filme é Blackenstein: The Black Frankenstein. Talvez LeVey achasse que alguém poderia supor que se tratava de uma versão blaxpoitation sobre a vida de Einstein e preferiu não deixar margem para dúvidas. Da mesma maneira que ele supôs, aqui, que ninguém iria imaginar que ia sobrar pro enfermeiro que foi mostrado, no início do filme, esculachando gratuitamente o indefeso Eddie.

Após mais intermináveis segundos do Blackenstein cambaleando pelos corredores do hospital, (se a idéia de ver um grandalhão cambaleando interminavelmente por corredores escuros parece empolgante, você vai se divertir à beça com este filme) a perguntar que não quer calar finalmente é respondida: sim, o enfermeiro escroto é a primeira vítima da fúria do monstro, numa sequência que mostra toda a influência do expressionismo alemão sobre a obra de Levey.


Mas o horror está apenas começando: a próxima vítima é um fofo cachorrinho encontrado pelo monstro em suas andanças sem rumo. Os donos do totó (uma loira peituda e um coroa pelancudo) escutam os gemidos de dor do cão e, após insistência da patroa, o cara acaba concordando em sair para ver o que aconteceu com o bicho. Um grito ecoa na noite, alarmando a loira, enquanto vemos duas pernas pálidas e peludas no chão, se debatendo.

Loiruda vai verificar o que ocorreu e se torna mais uma vítima da fúria homicida da criatura, sendo atacada e eviscerada numa cena que é um primor de edição: a moça sai da casa, com uma lanterna; ouvimos as batidas de coração que sempre indicam a presença do monstro; ela dá mais uns passos; corta para a loira, já sendo agarrada pelo monstro (que parece ter se materializado diante dela), vemos os pés da vítima se arrastando no chão; o monstro se atraca com ela por mais alguns segundos; escutamos o barulho de algo sendo estourado ou rasgado; a moça cai toda ensanguentada e percebemos que seu ventre foi rasgado e o monstro está brincando com suas tripas. Eu sei que esta crítica está cheio de vídeos, mas, sinceramente, não dá para fazer justiça à cena com meras palavras.


Deixando mais uma vítima para trás, Blackenstein (The Black Frankenstein) vaga de volta à mansão.

À mesa de jantar, Malcomb lança um olhar apaixonado para Winnie, enquanto esta retribui a paixão, à princípio, com um olhar que parece dizer "eca!" e, em seguida, com uma expressão de desconfiança. Stein, enquanto isso, lança um olhar sinistro sobre toda a situação, através do espaço entre os braços de uma estátua, colocada sobre a mesa, de dois amantes se beijando. É tudo muito intrigante e não contribui em nada para o progresso da trama.

Após mais uma cena inteiramente supérflua no laboratório, Winnie vai à masmorra e... Eddie está na cama. A moça injeta mais da tal "fórmula do DNA" e sai, fechando a porta da cela, mas não trancando. O que torna meio sem propósito toda a idéia de ter uma masmorra.

Partimos para mais uma vibrante cena de laboratório, onde a moça mistura alguns líquidos de cores diversas num tubo de ensaio. Intrigada por alguma coisa que nós, meros leigos, não logramos compreender, Winnifred pega a garrafinha da "fórmula de DNA" de Eddie, pousa, pensativa, sua cabeça sobre a mesa e cai no sono.

A criatura previamente conhecida como Eddie aproveita o ensejo para sair de sua cela e curtir a noite hollywoodiana. Aqui, vemos novamente aquele espetacular trajeto, percorrido lentamente pelo monstro, de sua cela até a rua.

Corta para o monstro no que parece ser um parque, grunhindo e cambaleando. A transição é essa mesma: num instante, o monstro está passeando pelo laboratório; no momento seguinte, vagando entre árvores. Um jovem casal chega ao local, num carro conversível. O rapaz começa a xavecar a moça, que não está nem um pouco interessada e rejeita rapidamente a lábia infalível do Don Juan, pedindo para ser levada para casa. O garotão, entretanto, parte da clássica premissa (origem da situação de incontáveis presidiários mundo afora) de que "quando uma mulher diz 'não', ela quer dizer 'sim'" e continua falando abobrinhas e tentando apalpar a garota. Esta perde a paciência e sai do carro, restando ao rapaz apenas sair em disparada, certamente com a intenção de chegar logo em casa e fazer justiça com as próprias mãos.

A donzela, por seu turno, é atacada pelo monstro (aposto que por essa ninguém esperava) e somos brindados por mais uma cena de pernas sendo arrastadas.

Na mansão, no dia seguinte, Winnifred, à mesa de jantar, é convidada ao laboratório por Stein. O inimitável Malcolmb (em uma cena "hilária") aproveita a ausência dos dois e come o que sobrou do almoço do cientista, feliz da vida. O que não tem qualquer repercussão sobre a trama, mas, a essa altura, já contribui, estranhamente, para a manutenção do ritmo da obra.

No laboratório, antes que qualquer conversa ocorra, o monstro, em sua cela (que agora parece estar trancada), ataca o doutor e sua amada. Nenhum dos dois parece estar surpreso com o estado do rapaz, embora seja a primeira vez que o filme mostre os dois encontrando o monstro acordado. Será que foram filmadas cenas dos dois se deparando com a transformação do gentil Eddie em uma criatura monstruosa e LeVey, profundo conhecedor da arte cinematográfica que é, decidiu, a fim de tornar o filme mais ágil, cortá-las na edição, deixando espaço para as imprescindíveis cenas do monstro vagando por corredores escuros por vários segundos e de Winnifred, Stein e Malcolm trocando olhares enigmáticos? Jamais saberemos.

Um novo elemento contribui para aumentar o intenso suspense da trama: uma dupla de policiais (um branco e um negro com um luxuoso black power, para que ninguém esqueça que estamos na década de 70) chega à mansão de Stein. O motivo da visita é saber se o cientista viu alguém estranho pela vizinhança que possa estar ligado à série de homicídios ocorrida recentemente. Basicamente, o médico diz que não e os dois policiais se dão por satisfeitos e vão embora. Essa foi por pouco. Não sei vocês, mas eu fiquei com o coração na mão.

Mais uma cena de Blackenstein grunhindo e cambaleando pelas ruas, ao som de música estrondosa.

Temos agora uma cena num nightclub. Para minha surpresa (embora seja mais uma cena totalmente desnecessária à trama), um humorista vai ao palco e conta duas piadas que até me fizeram sorrir (é tudo uma questão de contexto: levando-se em consideração a boa interpretação do humorista e o tédio excruciante do resto do filme, as piadas se tornam hilariantes). O comediante vai para os fundos degustar um cigarro após sua apresentação e acaba testemunhando a passagem do monstro. Felizmente, o rapaz, que foi o único ator minimamente decente a aparecer no filme até agora, escapa incólume.

Os próximos a cruzarem o caminho de Blackenstein, entretanto, não tem a mesma sorte. Trata-se de um casal que está num beco e a cena já começa errada: não há como saber ao certo se o casal estava simplesmente pretendendo mandar ver nos fundos do clube (e a moça, ao ver o monstro, faz uma expressão de horror) ou se a moça estava sendo estuprada (o que justificaria sua expressão de horror antes mesmo do monstro entrar em cena). Não vale a pena especular, pois tudo é interrompido pelo Frankenstein Negro. Após uma bem coreografada luta entre este e o amante-ou-estuprador (o cidadão é jogado no chão, levanta, dá umas duas porradas no monstro, é jogado no chão de novo, dá mais duas porradas no monstro e é jogado mais uma vez, caindo morto), a moça, ao invés de correr, adota o comportamento testado e reprovado em incontáveis filmes de terror vagamento: fica paralisada num canto, esperando pacientemente a criatura se aproximar e, em mais um momento de edição irretocável, é estripada pela criatura - num segundo, a moça está encostada na parede, tremendo; no outro, o monstro desfere uma pancada e a moça cai, abdomem e ventre rasgados, enquanto o Blackenstein se diverte com suas tripas. A criatura, aparentemente, não é das mais criativas na hora de escolher como barbarizar suas vítimas.

Agora a coisa fica preta: galvanizada pela série de hediondos assassinatos, o Departamento de Polícia de Hollywood mostra todo o seu peso, colocando uma força-tarefa de 2 (dois) veículos e cerca de sete policiais para deter a abominação homicida.

Entre esses bravos agentes da lei está o policial black power, interrogando o comediante, única testemunha viva dos horripilantes acontecimentos. Mostrando uma tendência a reimaginar a realidade, o humorista descreve ter ouvido um terrível grito e, em seguida, visto uma imensa criatura de três metros de altura. O que nos deixa um pouco confusos, pois 1) não foi assim que a coisa aconteceu (ele primeiro viu o monstro e, depois, o ataque ocorreu) e 2) nem fodendo aquele bicho tem três metros de altura.

Blackenstein retorna ao lar, onde, pela janela, flagra Malcomb tentando (após não lograr sucesso com o romantismo) conquistar o amor de Winnie mediante a única outra forma concebível pela sofisticada mente do mordomo: estuprando a moça. Inflamada pela fúria, a criatura sobe lentamente a escadaria, grunhindo, adentra o quarto e, diante do incrédulo olhar da moça... dá umas cambaleadas pra cima de Malcomb, que foge. E o monstro se volta para Winnie. A expressão da moça certamente deveria indicar pavor paralisante, mas só posso imaginar que a frase que a moça está pensando é "You fuckin' pansy!"

Malcomb, porém, não se deu por vencido. Corroborando nossas considerações sobre seu intelecto, o mordomo apaixonado retorna com uma pistola, disparando vários tiros contra Blackenstein e descobrindo, tarde demais, que devia ter imaginado um "Plano B".

Stein, alertado pela barulheira, sobe a escadaria em espiral. O simbólico lustre aparece uma vez, significando, concatenado com a escalada do cientista, que este está flertando com a morte. Encontrando o doutor, Winnie exclama que "O monstro é Eddie!"

Peraí... que porra é essa? Se a memória não me falha, essa maria cebola foi vista várias vezes dando injeções em Eddie após este ter se transformado no Black Frankenstein. Vimos, também, ela sendo atacada pelo mutante, bem como o cientista, e sabemos (como ambos devem saber) que a cela onde Eddie ficava "preso" estava sempre destrancada. Sinceramente... quem ela achava que estava cometendo uma série de homicídios nos arredores? Ali Babá e os Quarenta Ladrões? E por que Stein desconversou quando a polícia veio investigar? Por que Ali Babá, por coincidência, era parente dele? Puta merda, isso é tão idiota que adquire uma beleza transcendental...

Enfim, a debilóide e o cientista (que decifrou o código genético do DNA, não esqueçamos) saem correndo em disparada. Blackenstein, enquanto isso, aproveita o embalo para matar Bruno,e descer lentamente as escadas, grunhindo. Na metade da descida, entretanto, ele escuta os gritos de pavor da incrível mulher que rejuvenesceu, pensa melhor (não estou sacaneando, a cena é exatamente assim: o monstro escuta os gritos, pára por um instante e [só faltou dar um grunhido de reflexão] parece pensar melhor e mudar de idéia) e sobe as escadas para continuar a diversão. Mais uma vítima da vagarosa ameaça, que desça vez desce mesmo as escadas.

Blackenstein: The Black Frankenstein chega ao laboratório e percebemos que Winnie é tão ágil quanto seu noivo mutante: a moça está freneticamente (isto é, despreocupadamente) preparando uma injeção da "fórmula do DNA de Eddie" (cuja eficácia, como sabemos, já foi evidenciada reiteradamente). Mostrando uma percepção tão aguda quanto sua agilidade, Winnifred só percebe a presença do monstro gigantesco e barulhento quando este já está a alguns centimetros de distância e, para a surpresa de todos que nunca viram um filme de terror fuleiro antes, se encolhe num canto e fica gritando.

Em um momento de estonteante originalidade, Eddie, mostrando que ainda resta algo de sua humanidade no âmago de seu ser arruinado, reconhece sua amada e hesita. Stein, que estava sabe-se lá onde, aproveita a situação para atacar o monstro, confiante na impressionante capacidade de combate de que gozam todos os idosos. O resultado é pirotécnico, porém previsível.

Essa distração parece arrefecer o interesse do monstro em Winnie, fazendo-o retornar a dar vazão a seu verdadeiro amor: vagar lentamente pela rua e atacar uma cidadã que, até então, nunca tínhamos visto e jamais saberemos quem é.

A polícia chega ao laboratório e encontra Winnie. As peças estão no tabuleiro: tudo está em posição para um confronto apocalíptico entre o Frankenstein Negro e as forças policiais. Pelo menos era isso o que pensaria aquele cinéfilo hipotético que mencionei no início do artigo (se ele não tivesse falecido em razão das cem doenças que o fiz contrair). Mas não foi, entretanto, o que pensaram LeVey e Saletri.

Longe de se renderem a tal clichê, a obra segue uma direção mais interessante: o monstro carrega a vítima anônima para um depósito vazio. A moça se debate e consegue se libertar, sendo perseguida pelo monstro em mais uma eletrizante sequência onde Eddie caminha lentamente e rosna. Blackenstein não é, porém, páreo para a astúcia da vítima não identificada, que encontra um esconderijo infalível e passa despercebida.

A moça aproveita a oportunidade para fugir da maneira mais eficiente possível: subindo dois degraus de uma escada e emitindo gemidos audíveis a um quarteirão de distância. E, assim, para a surpresa de ninguém, Blackenstein encontra a intrépida jovem e faz mais uma vítima.

Quando tudo parece perdido, a polícia de Los Angeles recorre a uma tática inédita. Sabe aqueles "cães demoníacos" na capa do filme? Eles são (e isso não é piada; o negócio é tão retardado que qualquer piadinha seria redundante) os "Los Angeles County Canine Corps", que a polícia solta no depósito. Os bélicos totós atacam o mutante e, após um "apoteótico" confronto, evisceram a criatura. Percam o fôlego diante do clímax da obra, que os deixará empolgados como Renzo Mora após ler uma autobiografia de Preta Gil de 1500 páginas e narrada em terceira pessoa:


Após esse momento de intenso horror, Levey resolve adoçar a coisa com um "momento romântico" e totalmente sem pé nem cabeça entre Winnie e Policial Black Power, evidenciando que a moça ainda terá um longo caminho a percorrer na dura estrada para esquecer a morte de seu amado Eddie.

E, assim, todos vivem felizes para sempre. Não, porém, sem que sejamos brindados com uma última imagem da fachada da mansão de Stein.

Muito pode ser dito sobre esse filme. E eu já disse um bocado, é claro. Mas, além do que eu já disse, muito pode ser dito sobre Blackenstein. Dizer, porém, que o filme é uma porcaria, que a maquiagem é patética, que os atores são podres, que a "ciência" da história é digna de L. Ron Hubbard, que a fotografia faz uma novela da Globo parecer Suspiria, que a edição tem todo o vigor de quem acabou de ser atropelado por um ônibus e que toda a história pode ser resumida em questão de segundos é como dizer que levar um tiro no joelho dói. Embora eu tenha tentado reduzir a escrito a experiência surreal que é assistir a esta bomba, é preciso testemunhá-la pessoalmente (o que não é difícil: o trambolho está disponível em torrent e, creio eu, ninguém quis carregar a desonra de manter a "propriedade intelectual" da obra).

É óbvio que o único interesse dos culpados por Blackenstein foi faturar em cima do sucesso de Blacula, lançado no ano anterior. O problema é que, embora, à primeira vista, o "modelo" de Blackenstein pareça ser um besteirol do mesmo calibre, Blacula é um filme bastante decente, com um elenco geralmente competente, um vilão trágico interpretado com brilhantismo por William Marshall e um romance que, apesar de recorrer ao artifício de "amor reencarnado" que eu tanto odeio, consegue convencer. Quer dizer, o pessoal que fez Blacula decidiu sentar, pensar, escrever um roteiro e fazer um filme de verdade. Já Levey e sua turma viram um cartaz do Frankenstein de James Whale, pensaram, basicamente, "Ei, Drácula é tipo esse filme e Blacula é mais ou menos tipo Drácula, só que com um cara negro fazendo papel do Drácula. Então, se a gente pegar um cara negro, colocar uma maquiagem esquisita e um cabeção quadrado nele, o filme pode se chamar Blackenstein e também vai render uma porrada de dinheiro" e convenceram um bando de otários a financiar o "empreendimento". É altamente provável que ninguém envolvido em Blackenstein tenha visto uma das inúmeras versões cinematográficas da história.

Essa, entretanto, não é a beleza do filme, nem explica a experiência ímpar que é contemplá-lo. The Black Frankenstein, sinceramente, parece ter sido feito por gente que nunca assistiu a um filme antes e nem sabe exatamente o que é isso. A primeira vez que vê um personagem fazendo um monte de bobagens prosaicas e irrelevantes à trama, você pensa: "Hmm... alguém está querendo encher linguiça". Na segunda vez, a reação é a mesma. Já na terceira, o espectador começa e ficar intrigado e a ter a estranha sensação de que o "cineasta" e sua turma achariam que isso era genuinamente interessante. E na quarta (se o espectador já não ficou de saco cheio e parou de assistir) o processo se torna hipnótico. A mesma coisa com o monstro: depois de vários segundos da criatura cambaleando diante da câmera estática, você começa a ter a impressão de que algo finalmente vai acontecer; depois de dois minutos, o espectador já começa a ficar impaciente; após três minutos, a sensação é a de que a cena vai continuar assim eternamente; após quatro, tal sensação se torna estranhamente confortável, e, quando alguma coisa finalmente acontece, é quase decepcionante, por mais ridícula e hilariante que seja a técnica utilizada por Levey para filmar as "atrocidades" do monstro. O espectador começa a desenvolver um prazer masoquista com a idéia de que as andanças do monstro vão se estender eternamente. Em minha crítica de Incredible Melting Man, comentei que o roteiro era praticamente inexistente; comparado a Blackenstein, porém, aquele filme parece uma trama de James Ellroy.

Temos ainda, claro, a "ciência" do filme. A quantidade de asneiras é tão imensa e intensa que leva o espectador a questionar sua própria percepção da realidade: "Será que eu estou mesmo vendo isso?", indaga-se a vítima, intrigada. "Será que alguém achou que era possível ganhar um Prêmio Nobel da Paz por 'decifrar o código genético do DNA'? Será que outra pessoa, após ler o roteiro, não percebeu o tamanho da besteira e pensou que ninguém mais no mundo tinha noção do que é levado em conta para se receber um prêmio Nobel da Paz? Ou que o público também não sabia o que era 'código genético' nem 'DNA'? Ou que nada disso tem a ver com Nobel da paz e muito menos com um monte de máquinas barulhentas que emitem raios de eletricidade?" A resposta é um enfático "Sim, tudo isso é possível" e aspectos da realidade que o espectador sempre julgou evidentes começam a se tornar questionáveis. Nenhuma dessas bobagens foi um lapso: os personagens falam reiteradas vezes (como tentei mostrar ao longo deste texto interminável) no fato de Stein ter "decifrado o código genético do DNA" e nas injeções da "fórmula de DNA de Eddie".

A edição é igualmente desconcertante: enquanto um cineasta normal tentaria cortar cenas de exposição e se concentrar na ação, Levey faz questão de dedicar vários minutos a cenas de exposição absolutamente retardadas e ao monstro trôpego vagando por corredores escuros. Quando, entretanto, finalmente há uma cena de ação, cortes inexplicáveis turvam a compreensão do espectador. E não é o tipo de corte que evita efeitos especiais e, consequentemente, poupa dinheiro (Levey não hesita em monstrar barrigas rasgadas e tripas arrancadas, com efeitos que fazem o Nights of Terror de Andrea Bianchi parecer o Zombie de Fulci) - estou falando de cenas do monstro estrangulando alguém, trocando tapas, ou simplesmente arrastando a vítima, cujo acompanhamento se torna incompreensível graças a cortes durante a "ação". Para um exemplo típico, veja a morte da loiruda.

Trata-se, enfim, de um filme com fator trash dos mais elevados. Esqueça o bom senso e veja Blackenstein. William Levey tentou fazer uma tosca versão blaxploitation de Frankenstein, mas acabou fazendo o equivalente blaxploitation de Manos: The Hands of Fate.

quarta-feira, 20 de maio de 2009

Só Para Não Passar em Branco: Sam Peckinpah sobre "The Wild Bunch"


Revi o clássico acima hoje e lembrei de uma boa contada por Stephen King em "Dança Macabra". Segundo o relato, um jornalista, à epoca do lançamento de Meu Ódio Será Sua Herança, indagou ao diretor por que este dirigiu um filme "tão violento". "I like shoot 'em ups", respondeu Sam Peckinpah, tranquila e definitivamente. Parece que o saudoso mestre, ao contrário de mim, era um adepto da máxima shakespeariana segunda a qual "concisão é a alma da sagacidade."

domingo, 17 de maio de 2009

Superman II: The Donner Cut; Richard Lester: vá praticar um ato libidinoso consigo mesmo; Ilya Salkind: vá você também.

Tenho que deixar uma coisa clara: faço parte da maioria de fãs de gibis que considera os dois primeiros filmes da série Superman duas das melhores adaptações de todos os tempos e que o Superman II, embora inferior ao primeiro, ainda assim é muito bom. Isto posto (e talvez eu seja um fã retardatário), só ontem vi Superman II: The Richard Donner Cut e tenho que concluir: a culpa do segundo ter sido inferior ao primeiro é do diretor Richard Lester e acho que nunca mais vou querer ver a versão "original" novamente.

A história é manjada, mas tentarei resumir para quem não conhece: desde o início, a idéia dos dois filmes era um só épico dividido em duas partes. Segundo alegações de Donner, o roteiro original, escrito por Mario Puzo e reescrito por David e Leslie Newman e Robert Benton, seguia uma orientação camp, mais ou menos no estilo da série Batman com Adam West. Donner trouxe Tom Mankiewicz para a produção, creditado como "consultor criativo". Na prática, Mankiewicz reescreveu o roteiro, reduzindo drasticamente o fator camp e imprimindo à história o tom sério e épico desejado por Donner. Posteriormente ao lançamento do primeiro filme, com cerca de 75-80% da fotografia principal já feita por Donner, o pau comeu entre este e os produtores Ilya e Alexander Salkind. A verdade sobre a esculhambação é obscura, mas há várias versões: Marlon Brando, baseando-se no fato de o segundo filme ter várias cenas já gravadas com seu personagem, processou (e ganhou) para receber uma porcentagem da bilheteria; os produtores optaram por simplesmente suprimir as cenas com seu personagem, o que teria emputecido Donner. Os produtores, segundo este, estariam fazendo pressão para uma filmagem mais rápida e mais barata. Ilya Salkind, por seu turno, alega que Donner excedeu o orçamento e os prazos, demandava controle criativo total e final cut do filme e exigia a manutenção das cenas com Brando, sob pena de, à moda de Eric Cartman, "screw you guys, I'm going home". A conclusão da dramática baixaria é que Donner foi dispensado e a direção foi assumida por Richard Lester. Para este manter o crédito de diretor, segundo o Director's Guild (sindicato da categoria), teria que filmar pelo menos 51% do filme, resultando na maior parte das filmagens de Donner sendo limadas (estima-se que somente 25% do que este filmou foi mantido, e ainda assim só porque Hackman teria se recusado a participar de novas filmagens sem Donner na direção). Mankiewicz também caiu fora e, em conseqüência, praticamente todas as partes do roteiro que ele reescreveu retornaram à sua forma original.

Não posso falar por todo mundo, mas o que nunca gostei no versão original do Superman II (e acho que não estou sozinho) foi o excesso de "humor" acrescentado à história. Na verdade, mesmo no primeiro filme, já achei o Lex Luthor o ponto fraco justamente pelo roteiro tê-lo caracterizado de forma mais cômica. A interpretação de Hackman é excelente, e a dinâmica entre o personagem e seu capanga Otis, pelo menos, é genuinamente engraçada, mas nunca achei o personagem ameaçador - não obstante seu plano para se tornar o "proprietário" da Costa Leste dos EUA seja monstruoso, nunca assimilei aquele Luthor como um vilão de verdade. Achei o Luthor de Kevin Spacey muito mais eficiente. Neste aspecto, o segundo filme tinha o plus de ter três vilões de verdade. Não faço questão de que toda adaptação de gibi seja tratada com o tom de um drama sobre a Serra Leoa (o recente "Homem de Ferro", por exemplo, que tem um tom mais light, é excelente). O que acho difícil de encarar é um filme de super-herói cujo único adversário é um bufão. Mas, pelo menos, nunca achei o personagem insuportável e as virtudes do primeiro filme, em minha opinião, em muito superam as fraquezas. No segundo, porém, forçaram a barra com o camp e torna-se fácil entender por que Donner insistiu em trazer Mankiewicz para reescrever o filme.

A versão de Richard Donner, lançada em 2006, utilizando as cenas que ele já havia filmado e, para manter a continuidade e na ausência dos 20%-25% que ele nunca chegou a filmar, gravações de ensaios e testes. Não sei como foi solução jurídica para o problema após a morte de Brando, mas as cenas de Jor-El (cuja função, na versão original, foi substituída por Susannah York, que interpreta Lara, a mãe de Kal-El) foram restauradas. E os momentos mais xaropes do filme de Lester foram eliminados. Para evitar spoilers, tentarei ser breve ao mencionar as alterações.

Sabem aqueles inúmeros momentos "cômicos" em que Non tenta usar sua visão para queimar coisas e falha várias vezes, além de outras que fazem o personagem parecer não o psicopata animalesco descrito por Jor-El, mas um vilão da série "Esqueceram de Mim"? Fora.

Sabem toda aquela sequência com os terroristas em Paris e as trapalhadas de Lois Lane para conseguir um "furo" sobre o incidente, sendo resgatada pelo Super-Homem, que acaba, ao eliminar a ameaça dos terroristas, involuntariamente libertando Zod, Non e Ursa? Nada disso aparece na edição de Donner - a forma como os três vilões se libertam é bem mais sucinta e ligada diretamente ao primeiro filme.

Uma piada muito batida sobre os gibis e filmes do Super-Homem é que todo mundo no Planeta Diário deve ser imbecil, já que a "transformação" de Clark Kent no herói consiste, basicamente, em trocar de roupa, tirar os óculos e mudar o penteado. Pois é, isso não foi ignorado por Donner e Mankiewicz e é assim (mais o fato de que os dois nunca estão no mesmo local simultaneamente) que Lois Lane chega à sua teoria de que Kent é o Super-Homem.

Sabem aquela idiotice supostamente cômica e sem propósito de Lois Lane ter fixação por suco de laranja espremida na hora? Fora.

Tudo bem, a cena em que Lois Lane se joga na cataratas do Niágara para forçar Clark a se revelar era bem legal, mas foi substituída por outra muito melhor, e logo no começo do filme. Sabem aquela cena ridícula em que Lois finalmente descobre que Kent é o Super-Homem? Em que o herói, depois de vários malabarismos para convencer a moça que ela está errada, acaba, como um mané estabanado, tropeçando no tapete do quarto de hotel e enfiando a mão na lareira? Fora. É substituída por outra muito mais plausível e realmente cômica - ao contrário de Richard Lester, Donner e Mankiewicz não tinham o senso de humor estilo "Os Trapalhões".

As cenas entre o Super-Homem e sua mãe foram substituídas pelas originalmente filmadas por Donner com Brando. É uma alteração que faz enorme diferença: Jor-El e seu filho tem um debate que realmente enfatiza a natureza egoísta e as consequências da decisão que o Super quer tomar (no original, era basicamente um, "Manhê, mas eu quero ter uma namorada!" e "Meu filho, pense bem!") E quando, após levar uma série de porradas num bar e tomar conhecimento sobre a chegada de Zod, Ursa e Non, o herói se dá conta da merda que faz e decide voltar atrás e recuperar seus poderes... Porra, enquanto no original, Clark simplesmente encontra o cristal verde na Fortaleza de Solidão e não temos nenhuma outra explicação sobre sua recuperação, aqui temos uma cena com um show de interpretação de Brando e Reeve, que aborda e intensifica ainda mais as alegorias cristãs do primeiro filme e torna aquela frase de Jor-El sobre "o filho se torna o pai e o pai se torna o filho" algo muito mais que um diálogo bonito. Eu sugiro a todo mundo que veja o filme completo, mas, para quem não se incomoda com spoilers, eis a cena:



A batalha entre o herói e os três vilões em Nova York é mais prolongada e todos aqueles ridículos momentos pastelão foram excluídos (como o cara que, com o tufão provocado pelo sopro de Zod, Ursa e Non, leva uma "sorvetada" na cara e o imbecil que, mesmo em meio ao caos, continua falando no telefone e rindo como um débil mental).

O confronto final também é muito mais sucinto e lúcido, sem nada daquelas palhaçadas sobre os superpoderes holográficos ou o "S" gigante.

Aquela idiotice sobre o "beijo mágico que faz esquecer" também é excluída, sendo substituída por... tudo bem, a solução aqui também é bastante idiota, mas pelo menos é coerente com primeiro filme.

Enfim, mesmo que todas as queixas do produtor fossem a verdade absoluta, Ilya Salkind devia ter pago o que Brando queria e mantido Donner na direção, por mais insuportável que este estivesse sendo. Eu só toquei nos pontos principais. Todo o filme tem um ritmo muito melhor que o theatrical cut, mantém o tom épico do primeiro (apesar de ser cerca de dez minutos mais curto), a fotografia é muito superior e, francamente, embora tenha lido em vários sites sobre o estado precário das cenas "alternativas" utilizadas no lugar das que nunca foram filmadas, não notei tais discrepâncias. É a versão definitiva do filme e, depois de vê-la, você também não vai ter mais o menor interesse de rever o theatrical cut.

Finalmente - e eu gostaria muito de ter escrito isso primeiro, mas tenho que atribuir o crédito a quem é devido - vale mencionar essa consideração feita pela Cracked.com: seria justo dizer que todas as virtudes do theatrical cut de Superman II foram mérito de Donner e todos os defeitos, culpa de Richard Lester? Bom, quando Lester teve a oportunidade de dirigir sozinho e da estaca zero um filme com o personagem, o resultado foi Superman III.

terça-feira, 12 de maio de 2009

The Devil Rides Out (1968): Kickass!!!


Como diria Nelson Mandela, "this fucking movie kicks unbelievable amounts of ass".

Lançado no Brasil com o estapafúrdio título "As Bodas de Satã" (não tem nenhuma casamento demoníaco na história), este é um dos melhores (senão o melhor) filmes já produzidos pela Hammer, com uma das mais memoráveis interpretações de Christopher Lee (empolgante em um de seus poucos papéis heróicos); um roteiro enxuto, onde a ação parece nunca parar, embora não haja qualquer deficiência na exposição; uma seita satânica baseada em conhecimento considerável de magia cerimonial (não estou dizendo que acredito nisso, só que tenho um interesse acadêmico sobre o assunto e sei que o filme não saiu tirando sua mitologia do nada) e Charles Gray como o vilão satanista mais cool da história do cinema.

A trama tem início com a chegada do duque de Richleau (Christopher Lee) à Inglaterra, onde é recebido por seu amigo de guerra, o americano Rex Van Ryn (Leon Greene). O terceiro membro do grupo de compadres, Simon Aron (Patrick Mower), não comparece à reunião anual do trio. Tal ausência, tomamos conhecimento, é consistente com o comportamento retraído que o rapaz tem adotado ultimamente. Seus dois amigos, a fim de verificar o que está ocorrendo, resolvem fazer uma visita-surpresa ao rapaz, que se isolou numa mansão nos arredores de Londres.

Lá chegando, de Richleau e Rex percebem que entraram, involuntariamente, de penetras numa festa; Simon alega que não os esnobou, mas que se trata de uma reunião de uma "sociedade astronômica" a que ele se filiou recentemente. De Richleau e Rex, ignorando que sua presença não é bem-vinda (o duque ignora porque, já desconfiado, quer sondar o ambiente; Rex, porque realmente é meio sem noção), resolvem dar uma circulada e trocar umas idéias com a turma, que se revela um aglomerado de ricaços das mais diferentes nacionalidades, entre os quais o parrudo e enigmático Mocata (Charles Gray), que, aparentemente incomodado com a presença dos dois caras-de-pau, chama Simon para uma conversa particular.

Aproveitando o ensejo, de Richleau continua a sondar a área, captando fragmentos de várias conversas entre as diversas panelinhas da festa; Rex, enquanto isso, tenta xavecar uma jovem, Tanith (Nike Arrighi). A investida do "galã" se revela infrutífera: a moça, ao perceber que Rex não é membro da sociedade e, portanto, está excedendo o "grupo de treze" que deveria estar ali na ocasião, dá um célere chega-pra-lá no sedutor frustrado e se afasta.

Finalmente, Simon (claramente sob pressão de Mocata) percebe que os amigos não vão se mancar e resolve, delicadamente, sugerir que eles se retirem, dado que se trata de uma reunião exclusiva, prometendo entrar em contato em breve para que os três possam "tomar umas" mais à vontade. O duque não se ofende, pedindo apenas para dar uma olhada no observatório astronômico da casa. Ansioso para se livrar dos dois pentelhos, Simon concorda.

O observatório, é, digamos assim, meio suspeito, sugerindo que sutileza não é uma das notas características da tal "sociedade astronômica".

Os símbolos que adornam o recinto, associados a uma galinha branca e um galo negro (bom, pelo ocultismo, era para ser negro, mas na verdade é mesclado, negro e pardo) que de Richleau encontra em um dos armários confirmam suas suspeitas: sociedade astronômica é o escambau - Simon está envolvido em uma seita de magia negra. Resolvendo deixar a conversa de bêbado para delegado de lado, o duque vai direto ao ponto e confronta o jovem sobre o fato, recebendo o típico "a vida é minha e eu faço dela o que eu quiser" como resposta. De Richleau tenta, racional e calmamente, persuadir o rapaz, apelando para sua experiência e idade e explicando que, durante toda a sua vida, estudou esoterismo, e que o amigo está sendo induzido, ingenuamente, ao culto ao Maligno. Não logrando êxito em convencer Simon a abandonar suas "novas experiências", o duque perde a paciência e parte para uma abordagem mais convencional:

Aplicando um certeiro soco no jovem, que desmaia, le Duc abduz o rapaz e, na saída da casa, ainda bate a poeira do mordomo. Só pra sacanear. Isso é massa: menos de quinze minutos de filme e já temos Christopher Lee perdendo a compostura e descendo a porrada duas vezes.

De Richleau conduz o rapaz a sua casa, onde o submete a uma sessão de hipnotismo para reverter a "lavagem cerebral" que teria sido feita pela seita e o deixa em um dos quartos de hóspedes, com a sugestão hipnótica de dormir por oito horas e acordar "de mente clara". E com um crucifixo em torno do pescoço. Rex, claro, não entende nada e acha que o duque está levando o negócio a sério demais. Lamentavelmente para os rapazes, Mocata, líder da seita, também não é homem de ficar punhetando, e usa seus poderes sobrenaturais para fazer o rapaz fugir na calada da noite.

Percebendo a sacanagem que lhes foi aprontada pelo satanista, de Richleau e Rex retornam à mansão de Simon, onde não encontram o mancebo. Mas, no observatório, são confrontados diretamente, pela primeira vez, por uma manifestação física dos superpoderes de Mocata, escapando por um triz.

A situação, evidentemente, deixa Rex mais propenso a acreditar nas teorias de seu amigo. De Richleau, explica, então, o significado dos símbolos, do casal de galináceos, do antigo tomo de ocultimo que eles encontram na desagradável segunda visita à casa de Simon e tudo o mais: o jovem está prestes a ser induzido numa seita satânica, provavelmente liderada por Mocata, e seu batismo de sangue, que deveria ter sido realizado naquela noite, tornaria praticamente definitiva a perda de sua alma para o Tinhoso. É então que o duque se dá conta que a noite seguinte, véspera do primeiro de maio, é o maior Sabbath do ano, quando certamente Mocata aproveitará a ocasião para celebrar o batismo satânico de Simon.

As possibilidades de a dupla impedir o fatídico batismo melhoram quando Rex se lembra que já havia encontrado Tanith, a jovem que tentou xavecar na "festa", em outra ocasião e os dois, munidos do nome completo da moça, conseguem localizar onde está hospedada. Usando, presume-se, cantadas provavelmente mais eficazes que suas abordagens anteriores, Rex basicamente sequestra Tanith (que também ainda não foi "batizada") e, conforme acordado com o duque, a leva para a casa de de Richard e (Paul Eddington) Marie Eaton (Sarah Lawson), sobrinha de De Richleau.

A abdução, porém, não dura muito tempo: assim que chegam à casa, é só Rex estacionar e virar as costas que a beldade, sob a influência de Mocata, furta o carro e foge em disparada. Rex, sem muita cerimônia, pega o carro do casal emprestado e segue a fujona. Após uma frenética perseguição (bons tempos aqueles, em que ninguém achava necessário dez cortes por segundo para tornar uma cena de perseguição automobilística "mais emocionante"), Tanith, auxiliada pelos poderes malevólos do vilão e contrariando toda a sabedoria popular sobre mulheres na direção, acaba levando o herói a bater o carro e ficar comendo poeira na beira da estrada.

Por sorte, o destrambelhado herói, após quase ser atropelado na estrada por outro membro da seita, também a caminho do Sabbath, consegue seguir o autor do atropelamento fracassado até os portões de uma mansão (porra, todo mundo nesse filme é podre de rico e tem uma mansão...), em cujo jardim se encontram estacionados uma cacetada de carros, e testemunha Mocata, Simon e mais uma porrada de gente usando capas pretas saírem da casa e seguirem em carreata com os veículos. Sorrateiro, Rex consegue se entocar na mala de um deles, identificar o local onde ocorrerá a carimônia satânica e entrar em contato com De Richleau, que se apressa em chegar a tempo de impedir a sua realização.

Mocata realiza a liturgia que, para quem tem algum conhecimento de esoterismo e ocultismo é bastante autêntica, desde a indumentária aos apetrechos utilizados e invocações. E bastante atmosférica e sinistra, ao contrário de 99% dos rituais satânicos mostrados em filme, que geralmente são risíveis. Segue-se, broxantemente, a orgia satânica mais recatada da história do cinema (no livro, o negócio é um tremendo bacanal; aqui, é só um bando de manés vestidos, enchendo a cara e dançando, mas temos que dar um desconto: a censura britânica, à época, era tão cheia de frescuras que foi um milagre terem sequer permitido a produção, que a Hammer tentava tirar do papel desde 1964), culminando com a presença do Coisa-Ruim em pessoa...


De Richleau e Rex, entretanto, não perdem tempo e interrompem a farra na base de faróis, tentativas homicídio com veículo automotor, porradas e lançamento de crucifixos, finalmente resgatando Simon e Tanith, fugindo no carro de um dos satanistas e os levando para a segurança do lar do casal Eaton.

Mocata, contudo, é persistente como um adolescente lutando para se livrar do estigma da virgindade. De Richleau vai à cidade, fazer algumas pesquisas, deixando Simon e Tanith sob a guarda de Rex e Richard. O satanista aproveita a deixa e resolve fazer uma visita, a pretexto de devolver o carro do duque, que ficou no local do ritual após a fuga. E temos aqui uma das melhores cenas do filme, em que Charles Gray dá um show de interpretação e Mocata, de competência.

A princípio, de forma bastante razoável e persuasiva, o vilão tenta convencer Marie Eaton a permitir-lhe conversar com Simon e Tanith, aduzindo que as idéias do duque sobre suas práticas são baseadas em preconceitos supersticiosos; a conversa, entretanto, não convence a moça. Mocata, então, parte para uma demonstração ao vivo de seus poderes, e usa de hipnose para descobrir onde os dois se encontram, quase provocando a morte de Rex e Richard, deixando de lograr êxito por mero azar e saindo de cena com uma das melhores (tanto em teor quanto em entonação) ameaças do cinema de horror de todos os tempos: "I shall not be back, but something will. Tonight. Tonight something will come for Simon and the Girl." ("Eu não voltarei. Mas algo virá. Esta noite. Esta noite algo virá atrás de Simon e da garota.") O homem é foda! E a maneira casual como ele profere a ameaça (com a mesma despreocupação de quem diz "Então tá, amanhã a gente se encontra no boteco do Chico pra tomar umas") consegue ser, simultanemente, intimidadora e hilária. O sujeito é o Dean Martin do satanismo. Testemunhem:



A coisa toda culmina com um confronto de poderes esotéricos e de forças de vontade entre Mocata e De Richleau, envolvendo este, Simon, Richard e Marie, protegidos por um "círculo mágico" contra o "algo" que Mocata vai enviar. O "algo" abrange variados tipos de aparições, chicanas sobrenaturais, monstros gigantes e até o próprio anjo da morte. E isso ainda é antes do clímax do filme, que consiste numa corrida contra o tempo para impedir o sacrifício de uma criança. A conclusão da história, embora pareça extremamente "viajada" à primeira vista, faz bastante sentido dentro da lógica interna do filme e é extremamente satisfatória (ao contrário de reviravoltas de merdas recentes como "Identidade" e praticamente tudo que M. Night Shyamalam fez depois de "Unbreakable").

Não vou dizer que "não se fazem mais filmes assim", porque 1) ainda fazem, embora raramente; e 2) porque corro o risco de parecer um saudosista rabugento. Mas vou dizer que é extremamente difícil encontrar filmes assim hoje em dia. A trama é muito densa e repleta de reviravoltas, mas a direção e o roteiro, respectivamente, dos veteranos Terence Fischer e Richard Matheson conseguem condensar tudo em 95 minutos de filme, sem em momento algum perder a coerência. O ritmo é acelerado do início ao fim, mas não se deixa nada a desejar em caracterização ou exposição. Ao final, o espectador fica surpreso com com a curta duração - trata-se de um daqueles raríssimos casos em que você tem a impressão de que o filme é mais longo não porque ficou de saco cheio, mas porque parece improvável que tenha acontecido tanta coisa em tão pouco tempo. É uma experiência fascinante ver The Devil Rides Out logo após assistir a uma merda interminável e cheia de embromações como "Piratas do Caribe 3".

O filme é baseado num livro de Dennis Wheatley, que era amigo pessoal de Christopher Lee, extremamente prolífico e um best-seller à sua época, mas pouco lido hoje em dia. Só li três obras do autor (The Devil Rides Out, To the Devil... a Daughter e The Satanist) e entendo perfeitamente o motivo de sua atual falta de popularidade: apesar de ser um contador de histórias decente, baseadas em enciclopédico (embora, em meu entender, ideologicamente equivocado) conhecimento de ocultismo, Wheatley era também um racista virulento, um entusiasta do imperialismo britânico como instrumento de civilização de "culturas inferiores" e, suspeito eu, com base no que li, um defensor da eugenia em sua pior acepção. É sério: nos três livros citados, os vilões eram sempre estrangeiros (geralmente oriundos da Ásia ou da África), geralmente portadores de alguma deformidade ou deficiência física. O Mocata literário, por exemplo, ao contrário de sua sofisticada e inglesa versão cinematográfica, é um estrangeiro (de onde, não se sabe, mas fica claro que ele não é caucasiano) extremamente obeso e padece de uma língua presa que torna muito difícil levá-lo a sério; na primeira "reunião", praticamente todos os convidados, com exceção de Simon e Tanith, têm algum defeito físico berrante. Fica implícito, também, que foi o fato de Simon Aron ser judeu (e, pela lógica do autor, "mais fraco") que o teria deixado mais "vulnerável" à sedução do satanismo. Na verdade, na primeira página do livro há uma frase totalmente sem propósito a respeito de Richleau estar indo visitar seu amigo Simon Aron, "o judeu de Londres". Os mocinhos, por outro lado, eram invariavelmente britânicos, brancos e tradicionalistas. Eu detesto o "politicamente correto", mas esse é um daqueles casos extremos mesmo: o racismo do homem era um negócio tenebroso e acabava transformando histórias com tremendo potencial em palhaçadas. Seu anti-comunismo histérico também não ajudava. Compreendam: eu tenho uma profunda repulsa pelo comunismo e acho o apego historicamente retardatário da esquerda latino-americana às baboseiras marxistas um dos fatores que contribuem para o atraso da região. Mas Wheatley era daqueles que achavam que comunista come criancinha. The Satanist é o caso mais ridículo: toda a trama da história parte da premissa de que havia uma conspiração internacional envolvendo a União Soviética e o satanismo. Mas The Devil Rides Out ainda tem um parte chatíssima (felizmente ausente no filme) envolvendo a tentativa de Mocata localizar um tal talismã esotérico para levá-lo à URSS, o que ensejaria a hegemonia desta no cenário internacional. Matheson fez exatamente o que se espera de um escritor de seu calibre: expeliu tudo que havia de racista, fastidioso e ridículo no livro e fez um dos melhores filmes de terror sobre satanismo de todos os tempos.

Fisher não fica atrás, dirigindo com a segurança que o fez responsável pelos filmes que tornaram a Hammer um nome de peso no cinema de horror. A fotografia e cenografia, como de hábito nos filmes da produtora, são excelentes, e a recriação do período (o filme se passa na década de 30), é convincente e naturalista (ao contrário do visual dos góticos clássicos, que tinham um certa aparência artificial, típica de filmes totalmente filmados em estúdio, que lhes dava uma atmosfera de contos de fada macabros). A trilha sonora é, simplesmente, a melhor obra de James Bernard.

E o elenco, com exceção de Nike Arrighi (não sei se é o sotaque chato, não sei se é sua "beleza exótica", mas eu acho a personagem absolutamente xarope e não entendo o "amor à primeira vista" de Rex pela moça). Charles Gray, como já dito reiteradamente, compõe um vilão extremamente estiloso e carismático, inspirado no célebre (ou infame, dependendo do ponto de vista) Aleister Crowley. Francamente, o personagem se porta com tanta classe e expõe suas convicções de forma tão razoável, civilizada e inteligente que o espectador tende a se perguntar se os satanistas não teriam razão - até o momento em que ele mostra a verdadeira natureza de tais convicções, que incluem homicídio de quem contrariá-lo e sacrifício de crianças. Christopher Lee se destaca num papel atípico, conferindo a De Richleau, ao mesmo tempo, um ar de autoridade, integridade, decência e simpatia (o personagem poderia facilmente se tornar um xarope santarrão) que fazem o espectador a acreditar em suas suspeitas mirabolantes, de forma similar ao Van Helsing de Peter Cushing. Leon Greene, apesar de dublado para esconder o sotaque australiano, também convence, interpretando um indivíduo comum, basicamente decente, meio bronco, mas que jamais, felizmente, descamba para o comic relief. Sarah Lawson e Richard Eddington, apesar dos papéis reduzidos, não fazem corpo mole e tem especial relevância em momentos cruciais do filme. E nem a criança da história enche o saco. O fato de toda a trama ser tratada com extrema seriedade por todos, sem um vestígio de ironia, aliás, é um dos motivos que fazem o filme funcionar: assim como outro clássico do gênero, Night of the Demon, trata-se do tipo de história que poderia facilmente descambar para o ridículo caso não houvesse comprometimento total dos envolvidos com o tom sério do filme. E tal tom ajuda a engolir alguns efeitos especiais meios toscos (repare que eu nem os mencionei, pois os julguei desprezíveis em face da excelência do resto do filme).

Resumindo: Este filme é fuderoso. Assistam.